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Realidade? Isso existe? A cada dia que passa mais me convenço de que não. Especialmente quando se trata do passado. A memória é uma inimiga feroz da realidade. O cérebro pode armazenar milhões de informações e elas ficam lá, escondidinhas, inacessíveis. Se pegar um documento guardado em uma gaveta cheia já é difícil, imagine encontrar uma lembrança de um dia qualquer no jardim de infância quando você tinha 5 anos? Está lá, em algum lugar, mas como chegar até ela?

"Eu nunca esquecerei o horror daquele momento", disse o rei do tabuleiro de xadrez para a rainha, depois de ter sido agarrado por uma gigantesca Alice. E a rainha, pragmática, responde: "Você vai esquecer, a não ser que faça um memorando". O diálogo criado por Lewis Carroll mostra que a rainha do País das Maravilhas era esperta. Exagerada, talvez, mas esperta. Esquecemos quase tudo, por mais que o fato ou os detalhes nos pareçam importantes no momento em que acontecem.

Não duvido de que nem todos sejam assim. Cérebros há de vários tipos. Eu sou da turma que esquece e dou graças a Deus por isso. Ultimamente dei para desconfiar até do que eu me lembro. As lembranças da mais tenra idade, por exemplo. São poucas e rememorei-as tantas vezes que posso até ter reinventado uma a uma sem me dar conta. Eu realmente tentei fazer a água correr por dentro de um pedaço de bambu no quintal daquela casa onde morávamos, em São Mateus do Sul? A torneira estava emperrada demais para a pouca força de uma menininha de 3 anos e não tive a chance de descobrir que o bambu tem nós internos. Será que foi a frustração, que eu recordo ter sentido, que transformou um momento de brincadeira em uma lembrança duradoura?

Todas as minhas recordações de meus primeiros 5 anos de vida não encheriam um caderno. E olha que eu me lembro de sonhos e pesadelos. Amnésia infantil é o nome disso. A maioria de nós não guarda lembranças dos primeiros três ou quatro anos de vida. Talvez uma cena isolada, como aquela em que me vejo testando um pedaço de bambu. Parece que há várias teorias para explicar por que isso ocorre.

A questão toda tem relevância porque as lembranças nos ajudam a definir quem somos. Se fui uma criança alegre ou introvertida, se passava as tardes lendo ou se brincava com os amigos o dia todo; se fazia atividades com meu pai ou se só lembro dele nas refeições; se sou assim hoje é em parte porque vivi daquele jeito ontem.

A infância e a adolescência são idealizadas por nós na vida adulta. Para o bem e para o mal. Há quem se convença de que elas foram piores do que realmente foram. Há quem, crescido, passe a lembrá-las como períodos de inocência e alegria, ainda que não tenha sido bem assim. Nós inventamos uma vida para nós mesmos. Nossa família nos ajuda nisso. Quando estou começando a esquecer de um momento ou quando não tenho a mínima lembrança de algo que suponho importante, recorro à memória alheia. Que pode ser mais "pura" que a minha ou ainda mais contaminada por tudo que aconteceu depois. Fotos, objetos, cadernos guardados também ajudam. São como o memorando a que se referiu a rainha do País das Maravilhas.

O que resta de realidade nessa trajetória que inventamos para nós? Umas pinceladas, uns traumas mal curados, alguns momentos tocantes.

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