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 | Ilustração: Felipe Lima
| Foto: Ilustração: Felipe Lima

À morte de dona Elvira, seguiu-se um período de silêncio na antiga casa rosa. Depois veio a agitação dos herdeiros esvaziando gavetas para limpar o imóvel, que foi colocado à venda. Demoraram para tomar coragem de mexer nas coisas guardadas pela falecida; todos os muitos sobrinhos-netos e os dois irmãos que sobreviveram a ela estavam inibidos. Ninguém queria ser o primeiro a abrir armários e invadir memórias íntimas.

Um dia alguém teve coragem e começou. E, já que começou, melhor terminar. A confusão era grande. Maior ainda foi a surpresa. Dona Elvira era, no dizer dos sobrinhos, uma acumuladora. Descobriram ao revirar quartos e garagem, despensa e sótão, sala e copa. Dona Elvira guardava tudo, de lata de panetone a jornais. Tinha um fraco por papel. Caixas e latas continham exemplares de jornais e revistas, folhas soltas com anotações, papéis de presente com anotações, guardanapos com anotações.

O que é que dona Elvira tanto anotava? Receitas culinárias ("bolo inglês autêntico", "pavê de coco da namorada do João") e receitas de beleza ("misture o leite de rosas com o açúcar cristal e esfregue no rosto com delicadeza"), frases longas, que pareciam tiradas de livros, mas desacompanhadas do crédito que identificaria o autor. "Você gostaria de esquecer o passado, mas seu passeio leva-o, sem parar, de volta aos cruzamentos dolorosos." Nem a internet ajudou a localizar o autor ou a autora da frase. Mais fácil foi esta: "Em janeiro completarei 30 anos... Viva, velhice solitária, adeus, vida inútil!" O exagerado e dramático rapaz de 29 anos era Tchékhov. O mistério nesse caso era outro. A letra não era de dona Elvira.

Foi assim que os herdeiros da minha defunta vizinha descobriram que fazem parte de uma família de acumuladores. Não era só Elvira que guardava tudo, que era incapaz de jogar fora papeluchos com anotações, recortes de jornais, livros, bilhetes de avião, ingressos de museus, fotos, caixas e sacolas plásticas. Os irmãos também faziam isso e recorreriam a ela para guardar seus tesouros. Daí a variedade de caligrafias nas anotações, a confusa combinação de Quatro Rodas com Opalas na capa e exemplares de jornais estrangeiros; uma caixa de revistas Pop ("Os Carpenters: ‘Nós ainda acreditamos no amor’") e folhetos de missas dominicais; as anotações de Tchékhov junto com frases de Sobral Pinto. A personalidade que emergia daquele conjunto não fazia sentido porque não era uma, eram muitas.

Vi as caixas fechadas, identificadas por etiquetas que resumiam o conteúdo ("Folha de Guaratuba – 1973", por exemplo). Empilhadas na garagem onde antes ficava o Chevette de dona Elvira, esperavam o neto aparecer com a pick-up que levaria tudo para o sebo. As dezenas de anotações foram para o lixo. Sobreviveram algumas, essas que citei aqui, que duas sobrinhas-netas guardaram de lembrança da velha tia. Uma delas mandou emoldurar uma folha de caderno em que um poema aparece cercado por desenhos feitos com caneta esferográfica, daqueles que todo estudante rabisca durante uma aula monótona.

"Escrever é um passatempo?

Sonhar é um passatempo?

Esta página estava em branco

há poucos segundos

Um minuto

ainda não transcorreu

E agora eis a obra."

Suspeitou-se que o poema era do tio João, que passou a ser admirado como um poeta naïf. O orgulho da rapaziada durou só uma semana. Logo alguém descobriu que o poema é de Jacques Prévert.

"Minha tia era meio louca, não acha?", me pergunta a neta. É uma pergunta teórica, uma brincadeira. Todos amavam dona Elvira. Todos estão aliviados em saber que ela aceitou ser a arquivista da família. Aqueles livros e revistas, de outra forma, estariam ocupando espaço nos armários deles.

A casa está vazia. A moçada fez um belo trabalho. Foram corajosos. Ao longo dos dias enfurnados nos arquivos da tia, as emoções borbulhavam e incomodavam. O verdadeiro sepultamento da tia foi ali, nas caixas levadas para o sebo. Da tia Elvira, do tio João, do tio Alfredo. Acabaram revisando também suas próprias lembranças e apegos. Nada de revistas ou papéis. Guardam máquinas (um deles tem sete consoles de videogames), roupas, fotos e músicas e filmes no computador. Agora sabem que um dia toda essa memória será apagada. É uma tristeza e um alívio.

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