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 | Ilustração: Felipe Lima
| Foto: Ilustração: Felipe Lima

No retrato, o pastor presbiteriano Robert Walker desliza pela superfície congelada de um lago, perto de Edimburgo. Patina com os braços cruzados, provavelmente para proteger as mãos do frio. Está com a perna direita levantada, como um bailarino. O pastor devia gostar de patinar: aprendeu nos canais da Holanda, que congelavam completamente no século 18, e entrou para o primeiro clube de patinadores no gelo do mundo, criado na Escócia. O quadro é bonito e livrou o pintor, Henry Raeburn, e o pastor do esquecimento. É um dos mais procurados nas paredes da Galeria Nacional, em Edimburgo. Só de olhar para ele, sente-se um friozinho. É um refresco para nós, em dias calorentos como os deste outubro senegalesco.

Pinturas como aquela, de europeus cercados por águas congeladas, proliferaram na arte europeia até o século 19. O Hemisfério Norte enfrentava a Pequena Idade do Gelo, que não foi uma era glacial de verdade, mas um longo período com temperaturas mais baixas que o normal, que congelavam os grandes rios, como o Tâmisa, em Londres, e os canais de Roterdã e de Veneza. Parece que, de forma descontínua, ela foi da época do descobrimento do Brasil até o fim do século 19.

Como sempre acontece quando o frio ou o calor extremo se prolongam, as pessoas começaram a ficar impacientes. A ciência da época não explicava o que estava acontecendo, e reis e príncipes europeus decidiram agir por conta própria. Proibiram os comportamentos que estariam atraindo a fúria dos céus. A Baviera proibiu a dança, o jogo, o álcool, o sexo fora do casamento e os banhos conjuntos de homens e mulheres (que era um costume local). O Parlamento inglês se voltou contra o teatro, perseguiu atores e, num dado ano, vetou festejos natalinos. Para azar dos soberanos, nada funcionou e o povo foi ficando mais impaciente com os dias cinzentos e gelados que não acabavam mais. Pior, havia períodos de escassez de alimentos.

Essas histórias estão registradas no livro Global Crisis: War, Climate Change and Catastrophe in the Seventeenth Century, do historiador inglês Geoffrey Parker. A conclusão a que o historiador quer nos conduzir é que períodos prolongados de temperaturas extremas ou de desastres ambientais, como terremotos e tufões, perturbam as pessoas a ponto de causar movimentos sociais e políticos. A população se impacienta e fica propensa a contestar governos e a se meter em revoluções. A Europa teria sido mais conservadora e acomodada politicamente se seus cidadãos não estivessem congelando e passando fome, argumenta Parker.

Por aqui, não chegamos nem perto de experimentar invernos ou verões realmente rigorosos, daqueles que derrubam presidente. Em menor escala, quando o calor forte se prolonga por muitas semanas, como aconteceu no último verão, dá para perceber a irritação das pessoas crescendo. Se ao desconforto se somam os problemas práticos causados pela falta de água, o humor do cidadão azeda.

Em São Paulo, que vive um período prolongado de estiagem e está com os reservatórios quase vazios, o governador Geraldo Alckmin foi reeleito. Implicitamente, recebeu apoio para sua resistência em fazer racionamento de água. Fugir do problema, no caso de Alckmin, funcionou. Deve ser porque o ser humano prefere ser poupado da realidade.

Em outras palavras, as pessoas ficam satisfeitas de só terem de encarar o problema quando for inevitável, quando ele estiver dentro de suas casas ou de seus bolsos. O que merece ser discutido, neste caso, é que o Sudeste se encaixa no quadro que os soberanos europeus imaginaram lá atrás, com os humanos sendo punidos por seus atos obscenos. Nada a ver com banhos coletivos ou sexo antes do casamento. Tudo a ver com o desmatamento da cobertura florestal que protegia as nascentes e os rios, e com o desperdício de água.

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