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Meu pai gostava muito de carne: bistecas, bifes acebolados, churrascos faziam a alegria do mineiro. Por isso lembrei dele quando a carne desapareceu dos açougues brasileiros durante o Plano Cruzado. Foi há quase 30 anos. O boi estava no pasto, diziam. Os preços foram congelados e, segundo os pecuaristas, o preço da carne ficara defasado. Então, numa espécie de greve de matadouros, o boi foi retido no pasto. Diante das filas nos açougues, eu me lembrava do meu pai, que havia morrido poucos meses antes. “O que será que meu pai diria disso...”

Aquela foi uma das crises que este país presenciou. Houve tantas outras antes e tantas depois. Cada um de nós foi afetado por elas. Teve moratória internacional, poupança confiscada, inflação de 233,5% ao ano, presidente acusado de comprar apoio dos parlamentares para se reeleger, presidente acusado de comprar apoio de parlamentares para fazer o que lhe desse na telha. E uma porção de parlamentares se vendendo, o tempo todo, e depois sendo reeleitos pelo eleitorado que é obrigado a votar e vota em qualquer um.

De tanto presenciar crises, sinto que o brasileiro não distingue os períodos de normalidade dos períodos, digamos, especiais. Há cinco ou seis anos, quando o Brasil navegava em águas amenas e tínhamos indicadores positivos na economia, ouvi pessoas evocando uma crise imaginária para explicar qualquer dissabor. Em contrapartida, ou por causa dessa intermitência das agruras, esquecemos boa parte das confusões em que este país já se meteu. Ou em que foi metido, para ser mais justa com o território nacional, que não tem culpa da baixa qualidade gerencial e moral de seus dirigentes.

De tanto presenciar crises, sinto que o brasileiro não distingue os períodos de normalidade dos períodos, digamos, especiais

O jornalista Sergio Porto, nas crônicas que assinava como Stanislaw Ponte Preta, repetia a expressão “na atual conjuntura”. Ele ironizava a expressão que se usava naquela época, fim dos anos 60, para falar das dificuldades que enfrentava o país. Dívida externa, custo de vida alto, ditadura militar: essa era a conjuntura em que se movia Sergio Porto e contra a qual ele protestava a seu modo. O louco no hospício invocava a atual conjuntura, o compositor de samba-enredo também. Este último é o tema do Samba do Crioulo Doido, gravado pelos Demônios da Garoa. A canção fala de um compositor que se virava compondo sambas sobre a história do Brasil, como mandava a tradição das escolas cariocas. Até que pediram que o samba daquele carnaval falasse da “atual conjuntura”. O sujeito ficou tão confuso que escreveu uma letra sem pé nem cabeça em que a princesa Leopoldina se casa com Tiradentes por ordem de Xica da Silva.

A atual conjuntura de 2015 é dura, mas não tão difícil de entender. As falhas podem ser mapeadas, localizadas, rastreadas. Tanto as que são responsabilidades do governo quanto as que vêm da sociedade. Inclusive – e temos aqui algum progresso – na atual conjuntura há transparência e informações disponíveis de uma forma que nunca existiu antes. Se em 1992 foi preciso que o irmão do presidente da República o denunciasse para que a imprensa tivesse algo concreto para publicar, agora qualquer cidadão pode vasculhar despesas públicas disponíveis na internet. Além disso, a Polícia Federal e o Ministério Público investigam de uma forma que não faziam no governo Collor.

Não há mais necessidade de irmãos ressentidos nem de dossiês preparados pela oposição e deixados furtivamente nas redações. Como jornalista, me chamam a atenção as mudanças positivas que ocorreram no Estado brasileiro e também os vícios que permanecem. Se Na Atual Conjuntura fosse uma peça de teatro, eu diria que há uma grande diferença no cenário, mas que os atores – todos eles – continuam com os mesmos cacoetes.

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