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Descobri um poeta involuntário e improvável: o síndico do lugar onde moro. Em uma daquelas circulares para puxar a orelha dos condôminos que os síndicos são obrigados a fazer, ele invocou todos os moradores a respeitarem a "sagrada lei do silêncio". Ficou bonito, lá no meio da bronca dada em tom formal, aquela referência ao sagrado, e não uma burocrática e legalista ameaça com a lei municipal.

De fato, é consenso na nossa sociedade que as pessoas têm o direito de não serem incomodadas por sons produzidos por terceiros. Sendo consenso, é inquestionável. Sendo inquestionável, dá para dizer que é sagrado. Deve ser esse caminho de raciocínio que meu síndico-poeta seguiu. Os direitos aceitos pela comunidade são sagrados.

Quero saber o que mais é sagrado para as pessoas e faço um teste. Ao sair perguntando sobre isso, descobri outros poetas. O João me diz que sagrado é alguém que faz uma grande obra, ou que gera uma aura que sobrevive àquele que a gerou e envolve muitas outras pessoas. Ele cita Che Guevara, ainda inspirador para muitos 44 anos após sua morte. O oposto do sagrado, para ele, é subestimar o outro. Para a Anna, sagrada é a mãe dela. Imagino que muitas pessoas responderiam algo assim: a mãe, o filho. Será que alguém diria o marido ou a esposa? Provavelmente sim, mas serão menos numerosos do que os que citaram genitores ou herdeiros. O Marcus responde em segundos: seus filhos são sagrados, assim como a sua obrigação de pai de cuidar deles. O Alexandre diz algo parecido: a família dele é sagrada. A Paola abre o leque, mas permanece na mesma esfera: sagradas são as relações entre as pessoas, os vínculos entre os que se amam.

O Jorge me diz que sagrado é o que dá sentido à vida. E mais, ele entende que a vida por si só não é sagrada se perder seu sentido. E o que dá sentido à vida? Para ele, é amar alguém mais do que você ama a si mesmo. Me arrisco a traduzir assim o raciocínio de meu amigo: o amor verdadeiro é sagrado.

Aí se coloca uma questão importante: para o mesmo Jorge, uma pessoa doente, em coma ou com uma doença que lhe tira a consciência, como o Alzheimer, não está vivendo mais. O sagrado se perdeu. Por outro lado (e agora o raciocínio é meu), pode ser que o amor que alguém tem por aquele doente seja tão grande que sobreviva à limitação do doente. E aí o amor (aquele amor que é maior que o amor por si próprio) justifica a vida do doente, devolve-lhe o caráter sagrado.

Você deve ter notado que nessas abordagens muito pessoais não apareceu uma interpretação religiosa do sagrado. O que torna a conversa mais rica. Porque o sagrado das religiões é muito poderoso e não está aí para ser discutido. Não estou ignorando-o, até porque seria impossível ignorar a fé quando se fala em sagrado. Mas me interessa a discussão, me interessa o mergulho na intimidade que a pergunta "o que é sagrado para você?" me permite dar.

O Rogério, que citou religião, comprova a tese. Ele diz que não classifica nada como sagrado porque reserva a palavra para seu campo original, o da fé.

"Resposta chata?" – ele pergunta.

Não, resposta válida, eu respondo, ainda que feche a fresta da janela que usei para espiar a natureza humana.

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