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Assim como falamos em qualidade de vida, está na hora de falarmos em qualidade de morte. O assunto assusta, eu sei. Mas fuja e ele ficará pior. A medicina avançou para vencer doenças e prolongar a vida. Conseguiu. Mas não se pensou em como lidar com o fim inevitável. A situação chegou a um ponto em que não dá mais para adiar algumas perguntas. Queremos mais vida a qualquer preço? Ou queremos vida com alguma qualidade?

O ser humano consegue conviver com muitas limitações trazidas por doenças e pela idade avançada. Não precisamos ser jovenzinhos 100% saudáveis para viver. Mas passar os dias em uma cama, sedados e submetidos a tratamentos cada vez mais invasivos, não é vida. Nem para o doente, nem para quem ama o doente. Ver uma pessoa amada sofrer pode ser mais doloroso do que perdê-la para sempre. Todos nós já vimos isso acontecer com alguém próximo de nós. O roteiro se repete: meses de agonia, internações hospitalares que se tornam intermináveis, a cada dia a descoberta de um novo complicador, a tentativa de um novo tratamento. E o isolamento do paciente vai crescendo.

Por tudo isso, é bem-vinda a proposta do Conselho Federal de Medicina, que a Gazeta do Povo noticiou nesta semana, de criar no Brasil o testamento vital. Tra­­ta-se de um documento que cada um de nós, se quiser, pode usar para estabelecer limites para procedimentos invasivos em situações em que não há possibilidade de cura ou de reversão da enfermidade. Não tem nada que ver com eutanásia. Tem a ver com registrar a voz de cada um en­­quanto ela pode ser ouvida.

Sedados em uma UTI não poderemos nos manifestar. Nessa situação, nossa família, mesmo que saiba que nosso desejo é o de evitar a agonia prolongada quando ela é sabidamente inútil, não poderá fazer nada para nos ajudar. Poderá argumentar que preferíamos estar em casa nas últimas horas, com amigos e parentes e entrando e saindo para nos ver na hora em que quiséssemos e não nos 15 ou 30 minutos permitidos pela regra da UTI. Mas a palavra final será dos médicos, que podem nos dar alta ou não. Talvez de médicos que nunca nos viram antes, que nunca conversaram conosco sobre vida e morte. O desejo do doente, nesta hora, não vale nada.

Daí a ideia de criar um documento em que se estabeleçam alguns desejos básicos. Isso já existe em alguns países. O ex-governador de São Paulo, Mario Covas, foi o pioneiro. Em 1999, ele promulgou uma lei estabelecendo direitos para os pacientes, entre eles o testamento vital. Covas legislava em causa própria: estava morrendo de câncer, de forma visível e corajosa. Eu o vi nesta época discursando em um evento público. Sem cabelo, magro e, ao mesmo tempo, cheio de energia. Trabalhava normalmente e não escondia de ninguém que o fim estava próximo. Viveu a vida que quis. Tentou afastar de si e de outros a vida que não quis – os dias de agonia infindável no prolongamento da sobrevivência do corpo a qualquer preço.

Séculos atrás, em dois pontos distintos da Terra, pessoas se reuniram para meditar sobre a morte. Não qualquer morte, mas a boa morte. No interior de Portu­­gal, país católico, eles se tornaram os seguidores de Nossa Senhora de Boa Morte. Em algum lugar da África, agruparam-se em uma irmandade de mulheres maduras preocupadas em garantir funerais dignos. Os dois grupos se cruzaram no Brasil e a expressão "boa morte" passou a ser ouvida em algumas paróquias e em terreiros do candomblé.

Está na hora de pedir que Nossa Senhora da Boa Morte ilumine os membros do Conselho Federal de Medicina e do Congresso Nacional, para que o testamento vital se torne realidade. Ele não vai se aplicar a todas as situações, nem eliminar toda a dúvida e toda a dor. Mas vai nos lembrar de que podemos preservar a dignidade no fim da vida.

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