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Ray Bradbury é um poeta que escreve ficção científica. Poeta é como eu o defino. Oficialmente, o americano de 89 anos é autor de ficção científica. No mundo literário ele é conhecido por ser o autor de Crônicas Marcianas e Farenheidt 451, este levado ao cinema por François Truffaut. Também fez roteiros para cinema (Mobi Dick, com Gregory Peck, por exemplo). Com toda a especulação que a ficção científica permite (e parece que permitia muito mais lá nos idos dos anos 50), ele achou uma forma de realizar as fantasias mais loucas e impossíveis do ser humano. Foi fundo na brincadeira. Qual seria a maior das fantasias humanas? Não morrer? Pode ser. Mas quem se arrisca a sonhar com isso, por um instante que seja, logo lembra que a vida eterna não vai nos poupar da dor: sobreviver quando todos os outros são mortais é certeza de solidão e tristeza. O sonho tem de ir mais longe. Bradbury foi.

Em um conto de Crônicas Marcianas ele chega ao sonho perfeito. O grupo de homens enviados para colonizar Marte explora o planeta. Do alto de uma colina, eles enxergam o que parece ser uma aldeia. Fixam o olhar, apavorados com o desconhecido que os espera. Percebem que o lugar parece ser uma cidadezinha americana. Seus corações se aquecem —serão os marcianos parecidos conosco?

Aproximam-se um pouco e a surpresa aumenta. Cada um dos colonizadores vê algo familiar na vilazinha: a primeira casa se parece com o solar onde viveu a avó de um deles; outro percebe um sobrado que lembra o imóvel onde passou a infância.

Desarmados pela familiaridade, aproximam-se. Vêm ao encontro deles alguns marcianos. São verdinhos e cabeçudos? Não, são rostos amigos. Mais que isso, rostos amados. Um dos colonizadores grita e corre ao encontro dos marcianos: viu entre eles seu pai. Outro corre para abraçar dois adolescentes — são seus irmãos. Mas como eles estão aqui, se todos eles já morreram lá na Terra? Ouvem uma explicação: Marte é uma segunda chance que Deus dá aos homens. Cada um deles é levado para uma casa (a sua casa da infância) onde poderá se recuperar do susto e ouvir as explicações sobre o paraíso: um lugar onde se volta a um bom momento da sua vida que já ficou no passado, seja ele na infância, na adolescência ou em outra fase qualquer. E o melhor: com a chance de rever alguém que não está aqui, que no mundo real nunca mais veremos. Nunca mais ver alguém porque esse alguém não existe mais é uma pancada na cabeça, um chute no estômago, um soco no nariz. Melhor não pensar nisso, não é? Os colonizadores de Marte não pensavam, eram homens durões. Mas Bradbury sabe que as fantasias humanas são iguais em todo o mundo. Os marcianos também sabiam.

A fantasia não acaba bem. Quando finalmente se deixam levar pelo sonho e relaxam no calor da cozinha enquanto esperam a mãe preparar o jantar, ou no quarto em que observam o irmão mais velho, são trucidados pelos marcianos. Os vilões — que nunca são descritos por Bradbury — captam memórias dos humanos e materializam as imagens mais significativas para serem usadas como armadilha. Eles têm a arma perfeita: o poder de realizar a fantasia humana de reviver um momento no passado.

A explicação de Bradbury para seu método de trabalho ajuda a entender suas "viagens": "Eu não uso o intelecto para escrever minhas histórias e livros; tenho uma reação intuitiva a coisas que meu subconsciente me dá". Bradbury diz que pula da cama e transforma sonhos e pequenas lembranças e pensamentos em contos, o mais rápido possível, antes que se esqueça deles.

Outro dia o Tezza também citou Bradbury aqui; falou de um conto sobre borboletas que está em Crônicas Marcianas, do qual não me lembro. Lembrou do conto quando abordou as diferenças entre o português falado aqui e o falado em Portugal. Que esses contos sobre a exploração de Marte (que hoje sabemos não ter muito além de gelo, areia e gases) sirvam de pretexto para tantas reflexões é uma prova de que Bradbury é um grande escritor. Ele fala de marcianos e borboletas e nós pensamos na vida.

Marleth Silva é jornalista.

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