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Não tem história mais mal contada que as de família. Cada pessoa que participou dela lembra o episódio de um jeito diferente. Diz a tia: "Aí ela gritou um palavrão e jogou o vaso nele". E o cunhado retruca, com espanto: "Não, ela saiu calada e chorando". E assim vai. Dois dias depois do acontecido, o relato que circula entre os familiares já perde a veracidade. Anos depois, vira uma lenda — que pode ser melhor ou pior que o evento em si, dependendo do envolvimento de quem se lembra dele. Porque não há objetividade total quando se trata de relatar um fato. Menos ainda se o fato envolver nossa família.

Dizem que é de Freud a frase "Quando Pedro me fala de Paulo, me fala mais de Pedro do que de Paulo". Talvez nem seja dele. Mas resume bem esse fenômeno da comunicação: quando eu relato um fato que vi, seleciono inconscientemente detalhes que me tocaram e elimino outros; encadeio as partes da história em uma sequência nada aleatória em que vou hierarquizando as informações. A tia jogou o vaso depois de o marido ter lhe contado que estava indo embora com a colega do escritório ou a porcelana vôou quando ele comunicou que vendeu a casa na praia e embolsou o dinheiro? A parte que me chocar mais tem chances maiores de abrir meu relato quando eu contar a história para meus filhos.

No filme argentino Ninho Vazio, em cartaz em Curitiba, Leonardo e Marta almoçam com a filha e o genro. Leonardo conta que seus filhos sempre se sentavam no tapete da sala para brincar. Um dia, ele mudou o tapete de lugar para provocá-los. De forma muito natural, as crianças foram até onde o tapete estava, sentaram-se nele e puseram-se a brincar. "Era como um tapete mágico para elas", diz, enternecido. A mulher e a filha olham-no como louco e contestam: segundo elas, o tapete só foi colocado na casa quando os filhos já eram adultos. Leonardo está confuso e sempre repete esta mesma história inverídica, queixam-se as duas. Para evitar o constrangimento, o genro entra em cena e diz que, de qualquer forma, é uma história bonita e que "todas as histórias familiares são verdadeiras". Um homem sábio, aquele genro.

Todas as histórias familiares são verdadeiras — para quem conta... O ouvinte esperto sempre vai desconfiar delas. Mas o universo familiar é feito de lendas, crenças em que se faz força para acreditar, versões tendenciosas e lembranças confusas. E daí? Se a versão for bacana, inofensiva, por que não adotá-la como história oficial? Se for triste e revelar uma ferida familiar, daquelas que marcam várias gerações, melhor é enfrentá-la durante uma conversa com um amigo sensato. Ou no divã, diante de um discípulo de Freud. Que, se for competente, saberá tirar da narrativa sobre o personagem Paulo alguma informação útil sobre a alma do narrador Pedro.

marleth@gazetadopovo.com.br

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