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Tem histórias que pedem para serem passadas para frente, de tão boas que são. A de João Arbués Moreira é assim. É também a história de seu avô, João Camacho. Mas foi João Arbués que conheci quando visitei um museu, em Sintra, perto de Lisboa. Por isso é sob seu ponto de vista que posso contá-la.

João Capucho nunca estudou, mas ganhou muito dinheiro. Por isso, achava desperdício de tempo frequentar escola e debruçar-se sobre livros. Não queria saber dos netos adorados estudando e tinha uma estratégia para neutralizar o empenho do resto da família para torná-los cultos e preparados: em véspera de provas, o avô os presenteava com novos brin­­quedos para distraí-los. Eram li­­vros de um lado e, do outro, brin­­quedos novinhos em folha, escolhidos entre os mais tentadores que o dinheiro podia comprar. Os brinquedos venceram algumas batalhas e João Arbués levou notas baixas para casa. Quando a notícia do fiasco chegava ao avô, o que ele fazia? Premia­­va o desatento com novos brinquedos.

Um dia, na escola, um professor perguntou se as crianças faziam coleções. Alguém respondeu selos; outro, figurinhas e João Arbués, com naturalidade, disse "brinquedos". A classe caiu na risada, para espanto do menino que tinha achado sua resposta muito natural. O professor defendeu-o. Sim, é possível colecionar brinquedos e, como outros objetos da vida cotidiana, eles ajudam a entender a época em que foram criados. João Arbués ainda usa esse argumento para apresentar seu museu. Para corroborá-lo, estão nas vitrines os soldadinhos de chumbo entrincheirados na Primeira Guerra Mundial, os trens e ferrovias que retratam os anos em que este era o meio de transporte mais importante, os carrinhos de lata feitos com embalagens recicladas de sardinha porque não havia metal disponível durante a Segunda Guerra Mundial. E tem o jogo de tabuleiro soviético em que, independente da habilidade do jogador que estava com as cartas francesas, americanas e japonesas, era sempre a Rússia que vencia a partida.

Homem elegante, que se locomove em cadeira de rodas por conta de um AVC, João Arbués passa pelo museu diariamente, apesar de viver em Lisboa. Não pense o leitor que ele faz graça da estratégia do avô. Ao contrário, inicia o relato com um planejadamente envergonhado "eu não deveria contar isso". Mas conta. Para afastá-los da influência do velhinho que teimava em acreditar na permanência da lógica colonial e desprezar o avanço do conhecimento técnico, o pai de João Arbués mandou os filhos fazerem faculdade na Inglaterra. O que provocou o seguinte co­­mentário de João Camacho: "Ago­­ra é que você estraga esses meninos de vez". Também revela um pudor crítico ao contar como o dinheiro entrou na sua família. Foi através do açúcar plantado no Brasil, mais precisamente na Paraíba, pela mão de obra escrava. Um tio-avô, o brasileiro José Américo de Almeida, relatou a história da região no romance A Bagaceira e em outros tantos. Foi membro da Academia Brasileira de Letras, senador, ministro e quase vice-presidente da Repú­­blica (o golpe de Getúlio tirou-lhe a oportunidade).

O item favorito de João Arbués é uma Ferrari em miniatura que se abre para guardar uma garrafa de vinho. Os carrinhos eram feitos sob encomenda para Enzo Fer­­rari, o criador da escuderia, que os usava para presentear os amigos. No museu de Sintra, há uma foto de Ferrari entregando o brinquedo para Juan Manuel Fangio, o piloto argentino que correu em 1956 com uma Ferrari. O que está no museu foi visto por um amigo de João Arbués em um restaurante de Florença, na Itá­­lia. Avisado, ele pegou um avião e foi para a Itália atrás da miniatura. Não diz quanto pa­­gou, mas dá uma pista. Ao saber o valor pago, sua mulher contestou: "Você comprou o brin­­quedo ou uma Fer­­rari de verdade?". Era o brinquedo, que es­­tá agora no museu pa­­ra ser visto e apreciado por criancinhas que passam distraídas, sem imaginar quanta His­­tória está por trás daquelas vitrines, mas aprendendo alguma coisa com ela.

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