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Até tempos atrás, os velórios eram eventos sociais memoráveis. Passava-se a noite em vigília. Cabia aos familiares mais próximos manter a compostura e o ar de respeitosa tristeza. Mas aos amigos e conhecidos liberava-se um pouco da irreverência provocada pelo café forte e, às vezes, pelo álcool. A morte, essa fatalidade, iria acontecer mais cedo ou mais tarde. Como é hoje, naturalmente, mas, com tantos recursos para prolongar a vida, morrer se tornou um fracasso. Não apenas do morto, mas da sociedade, da espécie humana. No velório chora-se o desaparecimento de alguém e a derrota de todos nós. Talvez por isso os velórios estão cada vez mais curtos e não raro são interrompidos durante a noite.

Os livros registram belos exemplos dos velórios de outrora, quando se morria de modos hoje incompreensíveis. Após uma hemoptise fulminante, por exemplo. Ninguém mais fala em hemoptise, até porque não se vê muito dela por aí, a não ser em filmes e novelas, onde continua muito popular. Hemoptise vem a ser aquele sangramento pela boca, às vezes precedido por uma tosse brava, às vezes com o sangue surgindo do nada. Seria uma consequência da tuberculose ou de problemas cardíacos. Sinhô, o sambista que compôs Jura (“Jura pelo Senhor / Jura pela imagem da Santa Cruz, do Redentor, para ter valor a tua jura”), teve uma hemoptise na barca que ia da Ilha do Governador ao Centro do Rio.

Com tantos recursos para prolongar a vida, morrer se tornou um fracasso. Não apenas do morto, mas da sociedade

Quem conta é Manuel Bandeira, que foi ao velório e o descreveu na crônica “O enterro de Sinhô”. Estava encantado com os amigos enlutados do sambista: malandros, soldados, marinheiros, donas de rendez-vous baratos, meretrizes, chauffeurs, macumbeiros, baianas de tabuleiro, “prostitutazinhas em tecido opala vermelho”.

Não há julgamento nas palavras do poeta, há admiração. O terno claro de um homem negro é descrito como “absolutamente incrível”, a dor dos presentes é definida como “simples, natural, ingênua”. A capela é pequena demais e por isso as flores são colocadas em um botequim em frente, onde “bebe-se desbragadamente”. Bandeira admirava Sinhô, assim como admirava Zeca do Patrocínio, cujo velório – um ano antes – ele também descreveu em crônica (“Na câmara ardente de José do Patrocínio”) e durante o qual fora apresentado ao sambista.

Contemporâneo de Bandeira, de Sinhô e de Zeca do Patrocínio, o escritor mineiro Rodrigo Melo Franco de Andrade reuniu oito contos em um livro de 1936. Teria sido Manuel Bandeira quem deu o título: Velórios, ainda que nem todos sejam sobre este tema, mas sim sobre a morte e as reações das pessoas à ela. A edição da Cosac Naify que se encontra nas livrarias inclui um texto de Bandeira em que ele explica o que seria o estilo carioca de velar um morto: o estilo “conversa mole”. Contou Bandeira: “Lembro-me que no velório de meu pai (...) um sujeito – naturalmente com a caridosa intenção de aliviar o meu estado de espírito – tentou envolver-me na sua conversa mole”. A conversa mole era e continua sendo uma arte, mas nem todo mundo consegue ser artista numa hora dessas. Daí tantas bobagens ditas em velórios.

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