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Todos os dias é um sofrimento preparar-se para o trabalho. Ele acorda com ânsias, nem consegue escovar os dentes. Um mal-estar o deixa depressivo, e ele pensa em mudar de vida; mas na sua idade é difícil encontrar outra profissão, e ele até que sabe fazer bem aquela, tem um domínio técnico completo, mas lhe falta estômago. Eis a palavra: estômago. Então, vai para a cozinha de seu pequeno apartamento, tudo rigorosamente em ordem, e come um pote de granola com iogurte, que serve para diminuir as náuseas cada manhã mais intensas. Por uns momentos se esquece de tudo, não pensa para onde irá em poucos minutos. E este esquecimento lhe produz a primeira alegria.

Não escovará os dentes, para ficar com o gosto bom na boca. E segue para o emprego com uma disposição nova. Gostaria de ir a um parque naquela manhã de sol, os jovens com suas mochilas estão a caminho da escola, mães jovens passeiam com os bebês, funcionários andam rapidamente para um endereço qualquer. E ele é um desses funcionários. Mas não se apressa, saiu mais cedo de casa para poder andar lentamente rumo a um lugar que ele não suporta nem pronunciar o nome.

Ele tem sempre as roupas limpas e perfumadas. Envolvido por um odor de alfazema, sente-se num jardim florido, tão distante da rua e de seus venenos. Entra no supermercado meio alheado, como se para comprar um buquê de flores. Só quando vê o açougue se lembra de que é um dos açougueiros. E então volta a náusea. Detesta o cheiro da carne, pois não consegue desligar-se da imagem de animais mortos. Difícil o dia em que não encontra um cachorro ou um gato atropelado quando volta para casa. Não tem coragem de ajudar o animal se ele ainda está vivo e, uma vez, vendo a pasta de sangue escuro, vomitou. Vomitou muito. Não gosta do verbo vomitar, prefere regurgitar. Mas, naquele dia, pensou: estou vomitando.

Foi aos poucos, depois de anos como açougueiro, que se descobriu vegetariano. No começo, apenas evitava churrasco mal-passado. Depois foi diminuindo as porções de carne, deixava sempre uma grande quantidade no prato. Quando percebeu, já não se servia desse alimento. Daí resolveu parar definitivamente com a carne. Nunca mais a comeria. E tem seguido este regime há uma década.

Mas a tragédia é que dificilmente conseguirá outro emprego e todos os dias tem que passar 8 horas no açougue, em meio ao sangue. Assim que chega, tira as roupas e as guarda num armário, veste o uniforme branco, que ele nunca suja. É o único açougueiro que não se deixa macular pela massa de carne ou por respingos de sangue.

Para não desmaiar, não olha para a carne. Corta um bife finíssimo apenas sentindo a peça com as mãos. Olha para os compradores, para a distância, para uma parede onde há cartazes com o preço dos produtos. Isso faz com que os clientes o evitem, pois temem que ele se corte nesta tarefa.

Também não toca na carne. Usa luvas, e segura a faca como se não suportasse o seu contato. É um ser estranho naquele mundo. Para pegar carne moída no balcão, fecha os olhos, arrepiando-se todo com a maciez da matéria que encontra.

Alguém lhe pergunta se a picanha está boa. O açougueiro faz uma cara de nojo. O cliente percebe, e quer saber qual carne está fresca, fará um churrasco para umas visitas especiais e deseja levar a melhor carne. O açougueiro diz para ele tentar o mignon. Gostaria mesmo de dizer para ele fazer um churrasco de legumes – berinjela assada é ótima, ainda mais se você regar com um fio de azeite de oliva. O cliente se irrita com o açougueiro e não compra carne ali. Vai em busca de outro lugar onde ela seja confiável. Mas o problema não está na carne, e sim em quem a vende.

Segurando precariamente uma peça de alcatra, ele se aproxima da bancada para tirar alguns bifes. A faca afiadíssima rompe as fibras. Ele pega cada bife na ponta dos dedos. Derruba num plástico, embrulha e pesa. Ao terminar a operação, sente-se aliviado. Conseguiu atender mais uma pessoa; quantas vezes no entanto terá que fazer isso antes de terminar seu dia?

E outra pessoa já lhe questiona se o fígado de boi está bom. Como ele poderá saber? Tem vontade de gritar que detesta tudo aquilo. Mas é seu emprego. E na sua idade será quase impossível ganhar em outro lugar o que ganha ali. Não começará uma nova vida perto dos 50 anos. Então responde que sim, o fígado está ó-ti-mo. Pronuncia esta palavra com asco, sentindo algo subir à boca. Trata-se de uma saliva amarga, que tenta engolir, seus olhos ficam marejados, mas ele pesa o fígado, sentindo sua consistência gelatinosa, o líquido pegajoso grudando na luva.

Quando termina o dia, tira a roupa branca, que coloca em uma sacola plástica, amarra e a enfia na mochila. Seguirá de ônibus para casa. Quer chegar logo. É quando vê um animal qualquer atropelado e as náuseas voltam mais fortes. Em casa, coloca aquela roupa branca de molho. Toma um banho demorado, lavando bem as unhas com uma escovinha. Limpo, vestindo roupas folgadas, ele vai para a cozinha e prepara arroz integral, uma torta de legumes e mais alguma coisa. É quando começa a se sentir bem. Não comeu nada além de umas frutas no almoço, mas agora poderá fartar-se. E se esquecerá de sua profissão até a manhã do dia seguinte, quando entrará no supermercado sem a menor consciência de sua condição.

(A grande maioria dos professores de língua portuguesa leva uma vida de açougueiro vegetariano. Trabalha com a leitura sem apreciar o ato de ler, muitas vezes até odiando os livros.)

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