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Não sei ao certo quantos anos eu tinha, mas ainda era criança, quando tomei meu primeiro pilequinho. Sempre buscando conhecer o mundo, provei da pinga que ficava num armário em casa. De lá para cá, ora mais ora menos, dediquei-me a diminuir os estoques de bebida de bares e mercados. Como em minha família todos são adeptos desse esporte, nunca houve maiores repreensões quando eu chegava em casa acima do normal.

Nos últimos anos, venho tentando me livrar do álcool. Claro que não há ajuda nenhuma por parte de ninguém. Se o cara fuma, a sociedade cria mecanismos legais de exclusão. O cigarro incomoda quem está ao lado e compromete os orçamentos públicos para a saúde. Se usa droga, há todo um policiamento social sobre ele, o que faz com que esconda suas fraquezas. Mas se a pessoa bebe, coloca-se isso na conta da sociabilidade. O álcool está relacionado a coisas positivas: encontros, alegria, amigos, dança, comida, festa, sexo. A vida em sociedade é, em grande medida, uma vida ao redor de copos e garrafas. E bebemos para pertencer a um grupo. Para poder ter um bar, geralmente tratado como escritório, onde gastar parte importante da vida.

Deixei de beber novamente. É a terceira vez nos últimos cinco anos. Gosto de alardear determinação. Todo viciado acredita no seu poder. Paro de beber quando quiser. Não é verdade. Para conquistar esta liberdade é preciso interromper todo um processo químico. Há tratamentos adequados, mas sempre preferi me valer de meus dons de ficcionista. E então minto para meu organismo.

Evito pensar que nunca mais beberei. Digo que estou apenas dando um tempo. Assim, não me desespero. Mas, em determinados horários, vem a vontade de afogamento. No meu caso, é sempre antes do almoço e no fim da tarde. Algo em mim se contorce, sinto uma ansiedade, não me concentro em nada. Para estas crises, tenho vários placebos. Bebo água com gás como se fosse a mais fina cerveja. Tomo chimarrão apreciando um vinho especial. E as xícaras de café expresso sabem ao melhor licor. O organismo se acalma quando faço o teatrinho do alcoólatra.

Usando estes subterfúgios, chego a um ponto de controle total do meu querer. É aí que vem a recaída. Invento uma desculpa. Vou beber apenas nos sábados. E o calendário vai sendo ampliado. Na semana seguinte, acho que poderia ser na sexta e no sábado. Depois, por que não também no domingo? Quando a semana está cheia, digo que só beberei à noite. Mas beber na hora do almoço uma vez por semana não é nada assim tão prejudicial. E a coisa começa a ficar complicada quando às 10 da manhã vem a urgência de me afundar em algum boteco.

Neste estágio, começo de novo a parar de beber. Digo que esta foi a última vez – falo isso no dia seguinte, a cabeça doendo por conta da ressaca. E de fato fico três ou quatro dias dizendo que, sim, deixei o copo. Até o novo pileque. Este é o pior período. Não quero beber e bebo.

Compro água com gás, sucos, refrigerantes, chás. Mas no desespero, pois não acho nada que me acalme na geladeira, invento de abastecer o carro no meio da noite. E saio da loja de conveniência com uma latinha na mão e várias numa sacola. Antes de chegar em casa, já tomei duas ou três cervejas. Escondo as latas vazias na garagem para minimizar a dependência. E enfrento a família com ar angelical, para mostrar um controle que não existe. Depois de esvaziar todas, firmo bem os passos para ir ao banheiro e nem percebo que eles dançam ridiculamente à beira do abismo.

Interromper o vício vai ficando cada vez mais difícil. Nesta última tentativa – ainda em curso –, eu estava havia quase um mês de cara limpa quando veio a grande crise. Depois de uma semana sem álcool, você não sente dependência química. Passa por um período de confiança na cura. Na quarta semana, bate um desespero. É um momento perigoso. Eu sonhava que bebia cerveja. Mas eu mesmo me repreendia. Cara, você largou essa porcaria, por que voltar de novo? Como bêbado escolado, eu inventava a velha desculpa: é só umazinha. Acordava desses pesadelos suando e ia à geladeira para tomar longos copos de água.

Depois de vencer esta fase, ainda existem momentos de desejar bebida, principalmente quando vejo propaganda de cerveja. O que mais me encanta é o suor gelado da garrafa, as gotinhas escorrendo. Mesmo no inverno, sobe um calorão que só se acalmaria se... Daí, corro a um café e peço um expresso forte e amargo, queimando a boca ao beber. Ou como um doce qualquer e fico me culpando pelo pecado calórico.

Nada é pior no entanto do que a atenção de amigos e colegas. Aparecem sempre com as frases mais inocentes. Você não vai beber nada mesmo? Um copinho só não faz mal nenhum. O quê, uma massa maravilhosa dessas sem um vinho? Refrigerante sim é que dá cirrose. Mas estava fazendo mal?

Nessas horas, é melhor mentir. Meu colesterol não se comporta bem. O médico recomendou parar com os drinques por causa de uma gastrite. Tenho que perder peso e o álcool aumenta o apetite. Estou com um probleminha cardíaco, nada muito grave, mas sempre é bom cuidar. A desculpa definitiva é: ando tomando remédio controlado.

Assim, o bom bêbado vai se mantendo abstêmio, desfiando esse rosário de mentiras principalmente a si mesmo.

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