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Como roo as unhas, gosto de ter as mãos em ordem – não ao ponto de ir a manicure, porque na minha infância isso era algo que homem não fazia. Então não faço. Não faço uma série de coisas porque havia uma interdição em minha família. Tenho dificuldades, por exemplo, de usar óculos escuros, relógios e outros adereços. Claro que não conseguiria deixar que um profissional cuidasse de minhas unhas. Mas também não suporto unhas sujas, lembrança dos agricultores com quem convivi na infância. Tendo sido um deles, voltava para casa todas as tardes e ficava um tempão no tanque que havia no fundo do quintal, esfregando pés e mãos com a buchinha de lavar roupa. Eram luxos de um menino que não se adaptava à vida rural.

Quando passei a entender um pouco do mundo (ainda continuo entendendo quase nada), observava as mãos das mulheres. Numa época em que, pela consistência dos peitos e de outras partes pudendas, já não se reconhece uma mulher, muito menos pelo cabelo ou pela pele do rosto, tenho a perversidade de estudar as mãos femininas. Não observo o uso de esmaltes, nem as joias ou a extensão das unhas, se são ou não naturais, mas a saliência de nervos e veias. É pelas mãos que identificamos a única coisa que as mulheres hoje escondem – a idade. De tanto observar nos outros isso, vejo que minhas mãos pequenas se aproximam da imagem clássica das de bruxa, e que aos poucos vão me anunciando o cadáver que me sucederá. Como no poema de Augusto dos Anjos, já não acredito no amor, apenas na amizade entre minha caveira e vossas caveiras, senhoras.

Então, tudo que se relaciona a mãos me interessa. Até porque com elas ganho minha vida, nesta condição de escritor com as palavras na ponta dos dedos. Deixo que eles, os dedos, dancem sobre o teclado, e crônicas, poemas, contos, romances e críticas vão saindo naturalmente. Como o meu contato com o mundo se faz pelos dedos (sem nenhuma insinuação à impotência sexual), era de se esperar que eu fosse à manicure para retribuir-lhes um pouco do que me dão. Mas o escritor é um egoísta, tenta não reconhecer as dívidas. E destrói as suas áreas mais vitais.

Assustou-me, anos atrás, a figura de um homem que sempre andava com uma garrafa de álcool no carro e um frasquinho menor no bolso do paletó, como se fosse bêbado em fim de carreira. Primeiro evitava de toda forma cumprimentar as pessoas. Obrigado a isso, desgraçadamente era um vendedor e não podia se furtar a esta afabilidade com fins comerciais, ele se virava como um viciado que tentava esconder o seu crime, tirava o álcool do bolso do paletó e, com um lenço que já tinha sido xadrez, limpava as mãos. Não sei se ele continuou no ramo, deve ter fracassado, pois nada é mais agressivo do que este sentimento de nojo pelo outro.

E talvez nem fosse isso. É bem provável que aquele vendedor sofresse de TOC (Transtorno Obsessivo-Compulsivo), e sua mente o obrigasse a repetir o gesto higiênico mesmo depois de ter tocado em mãos perfumadas e carnudas de jovens deliciosas. Ele se limpava não pela necessidade de purificação, mas por conta de um problema psicológico. Era, enfim, uma doença. Não sei como se adquire o TOC, mas acho que vem de um medo do que pode acontecer. Repetimos as mesmas coisas para criar uma estabilidade num mundo em que o perigo está solto e é imprevisível. Criar uma rotina. Repetir para ter controle. Boa parte de nossos equívocos vem de nossos temores. Por causa do medo erguemos muros com cerca eletrificada, declaramos guerra a outros povos, casamos, escrevemos livros. No fundo, todos sofrem de transtorno obsessivo-compulsivo, tal como descobriu o sábio Simão Bacamarte, na sua isolada Itaguaí. A sanidade mental é uma exceção, e isso fica visível em alguns momentos.

Como nesta da gripe suína – que os defensores do politicamente correto chamam de H1N1. Se nem todos ainda experimentaram o uso de máscaras, que nos faz reviver o desejo infantil de ser o Zorro, ou outro herói mascarado, entregamo-nos ao álcool. Tenho alguns amigos que, durante uma conversa, mesmo sem ter tocado em ninguém nem em nada, e estando no seu próprio ambiente, de tempos em tempos borrifam álcool nas mãos e as esfregam. Em todos os lugares, vejo os frascos deste santo anti-séptico, e pessoas se dedicando ao ritual. Não tenho dúvidas de que isso surta efeitos, mas também revela que a grande maioria da população, por morrer de medo, sofre de TOC.

Até dias atrás, eu zombava desta paranoia. Não ia me render a um comportamento tão doentio. Apenas lavava as mãos com mais frequência, e controlava o desejo de roer as unhas em público. Assim que chegava em casa, usava a buchinha para limpar as unhas e ficava tranquilo.

Tomado pelo pânico, comecei a usar a bombinha de álcool com gel todas as vezes que a encontro disponível. E passei a não cumprimentar as pessoas. Se estou em ambiente coletivo, mantenho as mãos discretamente para o alto, sem tocar em nada. E me ofendo quando alguém me estende amistosamente a temida destra. Pego-a sem forçar, entregando-a ao outro como se ela fosse um peixe morto.

Tudo ficou muito tenso, mas confesso que me divirto quando flagro senhoras joviais usando o álcool. Não consigo desviar os olhos de suas mãos. A salvação geral seria o Ministério da Saúde recomendar o uso permanente de luvas.

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