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Dante coloca no Inferno, no segundo giro do sétimo círculo, os violentos contra si mesmos. E toda a tradição religiosa entende que os que se matam não merecem o Paraíso. Com seu romance O Céu dos Suicidas (Alfaguara, 2012), Ricardo Lísias (1975) cria um personagem que quer acreditar em outro destino.

Escrito com a rapidez própria das novelas de Voltaire, em que prepondera um tom filosófico, este romance se recusa a cumprir as tarefas descritivas. As cidades em que transcorrem os principais fatos – São Paulo, Campinas, Santos e Beirute – são incaracterísticas. O mundo real não tem espessura para o narrador. A cidade é outra coisa; é um ritmo e não uma paisagem: "São típicas dessas cidades horrorosas que não têm nada para oferecer além do clima ameno, o céu azul e a brisa agradável" (p.65). Tudo acontece no turbilhão de sentimentos e reflexões em que o narrador se perde. Também o tempo não tem marcações precisas, preponderando uma temporalidade conturbada como o próprio personagem.

Este personagem se confunde com o próprio autor, tal como se consolidou no romance pós-moderno. Assim, tanto o autor empírico quanto o narrador recebem o mesmo nome, nesta entronização do sujeito, marca de uma sociedade em que o eu é a medida para tudo.

O enredo do romance é minimalista. O Ricardo-narrador é um especialista em coleções, embora não tenha nenhuma no momento. Sofre transtornos psicológicos pela morte do amigo André, que se enforcou depois de uma discussão com ele. Este peso faz com que ele não aceite o fato de os suicidas não poderem descansar no além-túmulo. Paralelamente a tal drama, ele se desentende com familiares e pessoas de seu relacionamento, passando da placidez do bom menino à agressão gratuita em segundos, o que produz um efeito cômico na narrativa. Depois de acertar algo com um cliente, ele começa a xingar, ou na cara da pessoa ou por e-mail. Esta resposta imediata a qualquer contrariedade revela o homem contemporâneo, que se sente no direito de dizer tudo contra qualquer um. Ele também sofre por se saber atacado na internet.

Acuado interior e externamente, pela culpa e pelos ataques que recebe, Ricardo cria um factóide: quer comprovar o envolvimento de um parente seu com o terrorismo internacional. Para isso, sai em busca de informações, enquanto revisa mentalmente a morte do amigo. Este trabalho de pesquisa para provar uma suspeita infundada e a tentativa de achar um sinal para o bem-estar espiritual do suicidas dão algum sentido para a sua existência. Mas os confrontos crescem, chegando à agressão física. Ao ser internado, o corpo muito ferido, ele abandona o ritmo alucinatório e volta à realidade.

No fundo, o romance trata deste transtorno psicológico e da luta para freá-lo. Depois de o narrador encontrar na atenção das pessoas do hospital e de sua família uma margem de segurança, ele resolve dar um novo curso para colecionistas e começar mais uma coleção pessoal.

A coleção é uma forma de ordenar o mundo exterior, num esforço de racionalidade, de apego à História, essa força tão fugaz. O narrador que se desprendeu do real (no tempo e no espaço) termina ancorado nele, mas não no seu fluxo vivo e instável, e sim em alguns signos materiais que lhe permitem uma ordenação interior. Controladas as dúvidas místicas, ele se decide aos destroços históricos, transformando-os em um conjunto, em uma linguagem.

Romance intenso e envolvente, O Céu dos Suicidas coloca em cena os dramas de uma geração apegada mais às coisas, vistas como verdadeiros amigos, do que às pessoas.

O Céu dos Suicidas - Ricardo Lísias. Editora Alfaguara, 192 págs., R$ 34,90. Romance.

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