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Em vez de renovar a gramática com suas experimentações, Piglia a inviabiliza | Divulgação
Em vez de renovar a gramática com suas experimentações, Piglia a inviabiliza| Foto: Divulgação

Escrito como se fossem ruínas de outros livros, Alvo Noturno, de Ricardo Piglia (Companhia das Letras, 2011), renuncia aos recursos fundadores do romance policial. A maquinaria narrativa a funcionar com perfeição, marca deste gênero, é que joga a leitura para frente, prendendo o leitor. O livro de Piglia antes se arrasta, prejudicado pela sucessão de episódios soltos, de linhas que seguem para um lado e depois desaparecem, sem a menor relevância para o todo, a não ser para conduzir o leitor a espaços vazios da trama.

Atendendo a um desejo experimental, Piglia escreve uma obra aberta, que não renova esta gramática e sim a inviabiliza. Há um contrato de leitura estabelecido entre o leitor de policiais e o narrador que pressupõe um fechamento mínimo, recusado programaticamente pelo escritor argentino, um intelectual mais interessado em teorias do que na criação literária. Tudo neste livro é marcado por uma energia centrífuga. Há pedaços de histórias que não se sustentam, diálogos opacos absolutamente dispensáveis, longas descrições decorativas, confissões de personagens que não servem para nada; enfim, a impressão que o romance deixa é de que ele foi feito com pedaços de outros livros, justapostos de maneira aleatória.

Isto dá a Alvo Noturno uma flacidez que o compromete não apenas como romance policial, mas como grande ficção. A gratuidade de cenas, diálogos e reflexões é o seu principal defeito. Em nenhum momento, o leitor se sente diante de um mundo verossímil. O povoado onde se passa a ação é apresentado ora como um fim de mundo, minúsculo e retrógrado, ora como um lugar progressista. Uma das teses da morte de um estrangeiro (sim, há o mistério de um morto, pois o DNA da obra se mantém policial) leva a uma questão de especulação imobiliária – um grande shopping center seria construído no meio do nada, onde já funciona uma antiga fábrica, referência de uma modernidade periférica. Mesmo o personagem principal, o comissário Croce, não consegue ser mais do que uma versão incompleta do inspetor Maigret, de Simenon. Ele está sempre rondando os suspeitos e não consegue tirar a menor conclusão do que o atinge. Em determinado momento, enlouquece e se interna num hospício, de onde manda cartas anônimas que não têm sentido dentro da obra. Daí em diante, quem conduz a investigação é um jornalista de Buenos Aires, que passa longo tempo no campo, gentilmente liberado de seu trabalho.

Há um clarão misterioso que se manifesta à noite e que também não existe além da sua condição de pista mística, que explicaria a manifestação do mal. O livro traz ainda inúmeras notas de rodapé que introduzem informações supérfluas ou redundantes. E mesmo o episódio central para o crime, a entrada de um dinheiro sem fisco, para pagar as dívidas do filho do poderoso estancieiro, não convence. O pai poderia levantar muito mais dinheiro sem precisar "importar" aquele valor (para ele pequeno) de uma de suas contas no exterior.

Tudo soa falso no livro, embora a sua tese seja extremamente interessante: é impossível clarear o que está por trás de um assassinato. "Lutamos para descobrir as causas e deduzir os efeitos, mas nunca conseguimos conhecer a rede complexa de intrigas [...]. Quanto mais perto do centro você está, mais se emaranha numa teia sem fim" (p.242). Nem o comissário nem o jornalista desenredam o crime, que permanecerá na escuridão. Sabe-se apenas que foi condenado um inocente – um homossexual. Mas para se obter este efeito de emaranhamento e obscuridade, Ricardo Piglia usa uma coleção de lugares comuns, como se reciclasse uma tradição comercial de literatura. Alvo Noturno só tem sentido como crítica às limitações de um gênero. O seu valor está neste fim metalinguístico e não na transcendência literária.

Serviço:

Alvo Noturno, de Ricardo Piglia. Tradução de Heloisa Jahn. Companhia das Letras, 256 págs., Preço médio: R$ 38,90. Romance.

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