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Maria Clara, jovem e solteira, está grávida de um menino. A gravidez não foi planejada. O embrião tem nove semanas e ela já escolheu o nome: Joseph. Em uma noite de sonhos intranquilos, um anjo triste anunciou: "Teu filho será o mais desgraçado dos homens. Essa gravidez precisa ser interrompida. Levá-la adiante será a causa de grandes tormentos. Não há mal no aborto se for para evitar a dor e trazer o bem-estar". Ela fixou o olhar nos olhos do anjo caído, viu o futuro do filho e, de relance, o da humanidade: não será um salvador. Será um genocida.

O dilema de Maria consiste no seguinte: sabendo que o filho irá sofrer ou produzir os piores tormentos, por que, então, prosseguir com a gravidez? Noutras palavras, se nos fosse concedida a oportunidade de assassinar Hitler ou Stalin ainda na condição de embriões, não seria o aborto moralmente justificável ou, mais do que isso, não seria o aborto desejável? Penso que, mesmo no pior dos mundos possíveis, o aborto nunca deverá ser uma opção.

Parece conveniente pensar sobre o aborto quando imaginamos um filho perfeito vivendo em um mundo perfeito, de homens perfeitos agindo de acordo com padrões estritos de conduta, e em condições as mais corretas. Essa, na verdade, é a tentadora lógica do diabo: dar ao homem a ilusão de autossuficiência para que ele se imagine, a partir dessa ilusão, acima do bem e do mal.

Meditamos à luz da presunçosa crença de que sabemos o que é o melhor para nós e para os outros. Imaginamos um mundo segundo a nossa imagem e semelhança e odiamos tudo o que não se parece com essa imagem. No entanto, não faz sentido sequer pensar em um mundo perfeito. Tampouco há anjos tristes anunciando e prevendo tragédias. Assim, não faz sentido o esforço de fundamentar nossas decisões como se fôssemos detentores de verdades absolutas a respeito da história e de nós mesmos.

Decisões éticas devem ser fundamentadas no que nós realmente somos: seres mortais, finitos, contingentes, limitados e ignorantes. É preciso, portanto, pensar como um mortal, tomar decisões como um mortal e, sobretudo, agir como um mortal. E pensar assim significa ter de abandonar a soberba ideia de se colocar no domínio de Deus. Uma correta visão teológica do homem e da história não nos autoriza a tomar decisões como se fôssemos o próprio Deus.

Se pudéssemos prever uma doença grave de um filho ainda no ventre, doença que iria matá-lo na adolescência, isso não seria muito diferente de prever que na adolescência esse mesmo filho poderia se transformar em um assassino em série. Acreditamos no domínio da vida como garantia para evitar a dor e, com efeito, o mal. A partir desse falso domínio buscamos justificar um modo de vida e um reino de deveres. Mas nós não temos qualquer domínio sobre a vida.

Nós não somos capazes de prever e impedir sofrimentos, nem somos capazes de prever quando iremos morrer. A vida humana consiste em uma luta consciente e constante contra uma variedade de sofrimentos possíveis desde o momento da concepção até a morte. E é isso o que somos. Não faz sentido o sofrimento humano ser pago com a própria vida, sobretudo com a vida dos outros.

A lógica dos diabos poderia ser levada até as últimas consequências: para acabar com o sofrimento no mundo, só mesmo acabando com o homem. Mas não desejamos acabar com o homem. A experiência radical de ignorância, marca decisiva da condição humana, exige-nos a coragem de optar pela vida.

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