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Quando olha para o passado, a cabeleireira Cristina Vitor tem certeza de que sua vida melhorou muito. Em 2000, ela trabalhava como auxiliar de serviços gerais e ajudante numa creche — ou, como prefere falar, "no que aparecesse". O sonho de fazer cursos na área de beleza ainda era distante, mas, ao longo da década, Cristina se matriculou em alguns. Em 2004, já tinha aberto um salão de beleza informal, na sala da casa onde morava com o marido e três filhos, no Morro Dona Marta, em Botafogo. Com clientela fiel, foi equilibrando escovas, relaxamentos e manicures com a hora do almoço e a de mandar as crianças para a escola. Há um ano, já com a favela pacificada, inaugurou um salão "de verdade", com quatro auxiliares. A renda saltou para R$ 3 mil mensais, já descontados os salários das ajudantes e o aluguel de R$ 1,5 mil. A história de sucesso de Cristina, que nasceu e cresceu numa favela do Rio, é mais comum do que se imagina, como mostram dados do Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M) das regiões metropolitanas, divulgados em novembro pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), em parceria com o Ipea e a Fundação João Pinheiro. Eles revelam que todas as favelas da cidade do Rio têm IDH-M — calculado com base em dados de escolaridade, saúde e renda dos censos do IBGE — médio ou alto. Em muitos casos, são até melhores do que os de muitos estados brasileiros.

Enquanto o IDH-M da cidade do Rio subiu 11,59%, na comparação entre 2000 e 2010 (de 0,716 para 0,799), no caso do Dona Marta, o salto foi bem maior. A comunidade deixou para trás um índice de 0,563 (em 2000), considerado baixo, e pulou 21,4%, alcançando 0,684 em 2010, já no patamar médio. O empreendedorismo e a vontade de aprender dos moradores ajudam a explicar o fenômeno. Até 2009, Salete Martins trabalhava num trailer da favela, vendendo água, refrigerantes e sanduíches. Quando chegaram a pacificação e o projeto de incentivar o turismo no morro, ela enxergou uma nova oportunidade de vida. Fez dois anos de um curso de capacitação e hoje é guia e técnica em turismo.

"Abri minha empresa de receptivo há dois anos. Tem dado muito certo. Uma empresa que fez o tour comigo gostou do meu trabalho e deu uma bolsa para eu estudar francês na Aliança Francesa. Já me viro no inglês porque um turista, que também fez tour comigo, me dá aulas como voluntário. Se Deus quiser, nas Olimpíadas vou estar falando inglês muito bem", diz.

Se na favela de Botafogo muita coisa vai bem, obrigado, na Gávea, uma outra comunidade exibe um IDH-M de fazer inveja a muitos municípios. A Parque da Cidade tem um índice de 0,746, equivalente ao do Rio Grande do Sul, sexto colocado num ranking dos 27 estados brasileiros e Distrito Federal. A Vila Canoas, em São Conrado, também está no mesmo patamar. Numa das maiores comunidades do Rio, a situação também não é ruim: a Rocinha avançou 18% no IDH-M, segundo o levantamento. Entre as comunidades que evoluíram da condição de IDH-M baixo ou muito baixo para médio se encontram Cidade de Deus, Complexo do Alemão, Rio das Pedras (Jacarepaguá) e Dona Marta.

Na Parque da Cidade, a escolaridade de seus moradores é um trunfo. O local — talvez pela proximidade com a PUC, talvez pela ausência de tráfico ostensivo — tem atraído cada vez mais alunos de universidades dispostos a fugir dos altos preços de aluguéis na Zona Sul e estudantes estrangeiros. Mas, na comunidade, onde é possível alugar uma quitinete por R$ 800, bem mais em conta do que no asfalto, também é possível encontrar jovens que concluíram o ensino médio e agora investem na faculdade. E não é difícil identificá-los: na última sexta-feira, Isaac Albuquerque, estudante de geografia na PUC, descia as vielas explicando os problemas da Faixa de Gaza para o colega Israel Silva, aluno de design na mesma universidade. Ambos nunca moraram no asfalto. E não se consideram exceções.

"Conheço pelo menos uns 40 jovens daqui que estudam na PUC. Eu passei para lá e consegui bolsa", conta Israel, que não tem dúvidas de que a situação familiar vem melhorando. "Minha família hoje tem uma situação melhor do que a de quando eu era criança. Minha mãe começou como vendedora de uma padaria e hoje está na parte administrativa, com salário mais alto".

Para especialistas, o desempenho nas comunidades se explica por uma série de fatores. Eles citam investimentos do poder público (União, estado e prefeitura) de pelo menos R$ 4,5 bilhões nos últimos 20 anos na urbanização de comunidades; o surgimento de uma nova classe média; as políticas de redistribuição de renda, como o Bolsa Família, e a estratégia de retomada de territórios controlados pelo tráfico, com a implantação de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Para o economista e ex-presidente do IBGE Sérgio Besserman, por exemplo, os dados ajudam a derrubar mitos. "O que esses indicadores comprovam é que caracterizar favelas como locais pobres ou miseráveis é bobagem. Até porque 2/3 da população carioca que vivem abaixo da linha da pobreza não estão nas favelas. Além disso, era de se esperar que os indicadores melhorassem, não apenas por causa de obras de urbanização, mas de outros fatores, como a redução da evasão escolar".

O fundador da ONG Central Única das Favelas (Cufa), Celso Athayde, observou que esses indicadores se somam a outros que mostram a vitalidade das comunidades. Ele cita pesquisa feita em setembro pelo Instituto Data Favela, que estimou em R$ 64 bilhões a receita gerada por moradores de favelas em todo o Brasil. Desse total, R$ 12 bilhões são do Rio.

"Os investimentos em urbanização e a implantação de UPPs serviram para impulsionar a economia das comunidades. Muitas favelas podem nem ter recebido tantos investimentos públicos ou sequer estarem no planejamento de ganhar uma UPP, mas o clima de expectativa da melhoria dos serviços já contribui para o ambiente. Isso se reflete nos indicadores. A nova classe média que surgiu nessas comunidades nos últimos anos muitas vezes opta por permanecer onde sempre viveu", acrescentou Celso Athayde.

Para o coordenador do grupo AfroReggae, José Júnior, os problemas ainda existem. Mas a realidade obriga a rever o conceito de favela.

"A definição do que é favela deve ser entendida mais pelo aspecto cultural e por particularidades arquitetônicas do que propriamente por inexistência de serviços oferecidos pelo poder público. A tese de que tudo está ruim nas comunidades é mais uma discussão política do que realidade".

No levantamento, os pesquisadores calcularam os indicadores tentando reunir dados de regiões com perfis socioeconômicos parecidos. O coordenador do estudo no Rio, Marco Anrtonio Santos, do Centro de Estatísticas, Estudos e Pesquisas da Fundação Ceperj, observou que, por isso, em alguns casos, o IDH-M pode não respeitar completamente os limites geográficos.

A designação de favelas para muitas comunidades do Rio não se aplica mais. Para mim, elas têm que ser tratadas como bairros, inclusive pelo poder público. A polícia e outros órgãos deveriam dar o exemplo, substituindo oficialmente a nomenclatura como definem essas áreas. A gente observa essa mudança no dia a dia. A qualidade de vida mudou muito, e testemunhei isso de perto. Por anos, morei em Santa Teresa e pude observar as mudanças que ocorreram nas comunidades do bairro.

Nas comunidades do Rio de Janeiro, praticamente não existem mais barracos de madeira, por exemplo, e a oferta de serviços de saúde e educação foi ampliada. Os investimentos em infraestrutura no Rio de Janeiro, inclusive, foram bem maiores do que em outros estados, onde as condições de vida permanecem bastante precárias, como no passado.

Essa mudança se explica porque, ao longo do tempo, as favelas também passaram a ter um peso político importante, que influiu nas decisões sobre o destino dos investimentos públicos. É claro que as comunidades ainda enfrentam problemas, como a violência, mas esse é um desafio com o qual quem vive no asfalto também precisa conviver.

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