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censura
Palácio do Planalto, a Casa do Executivo, em Brasília.| Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil

A censura em nome da defesa da democracia se tornou comum no Judiciário nos últimos quatro anos, com a instauração do inquérito das fake news e todos os seus desdobramentos até as eleições de 2022. Agora, a mesma tendência começa a ser semeada no Executivo, com dois decretos publicados logo no primeiro dia do governo Lula.

Os documentos criam órgãos da União cujos nomes tornam inevitáveis comparações com o romance “1984”, de George Orwell. O artigo 47 do decreto nº 11.328 estabelece dentro da Advocacia Geral da União (AGU) a Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia, e o artigo 24 do decreto nº 11.362 inaugura dentro da Secretaria de Comunicação Social (Secom) da Presidência da República o Departamento de Promoção da Liberdade de Expressão.

A Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia poderá, entre outras coisas, “representar a União, judicial e extrajudicialmente, em demandas e procedimentos para resposta e enfrentamento à desinformação sobre políticas públicas”. Isso significa que qualquer membro do poder público terá à sua disposição um órgão da União capaz de representá-lo judicialmente em todo caso que couber no amplo e genérico conceito de “desinformação”, o que facilita a censura por parte do poder público.

Um aviso do novo advogado-geral da União, Jorge Messias, durante a cerimônia de sua posse, na segunda-feira (2), dá pistas sobre a utilidade do novo dispositivo: “Ataques a autoridades que presenciamos nos últimos anos não serão mais tolerados”, afirmou.

Para o professor e advogado Maurício Bunazar, doutor em Direito Civil pela USP, as expectativas "são as piores possíveis”. Ele explica que a AGU “é um órgão voltado fundamentalmente à defesa da União e ao aconselhamento do chefe do Poder Executivo”.

“Quando o decreto atribui à Advocacia-Geral da União a defesa dos poderes em geral, da legitimidade dos poderes e dos seus membros, o que nós acabamos por ter é a constituição de uma advocacia pública que pode ser voltada para interesses privados”, diz.

“A pretexto de se defender a democracia, o que se terá é um órgão voltado diretamente à busca de conformação de discursos. Ou seja, eles decidirão o que é ou não defensável em uma democracia. Se alguma ideia não se conformar com as noções que eles têm de democracia, haverá a possibilidade de medidas judiciais e extrajudiciais, como o próprio decreto autoriza”, complementa.

O especialista dá um exemplo: antes do decreto, se um jornalista da Gazeta do Povo escrevesse uma reportagem pouco favorável a um ministro de Estado, o político poderia acioná-lo judicialmente de forma privada, com recursos próprios, e pedir que o jornalista prestasse esclarecimentos perante a Justiça. “Agora”, diz Bunazar, “eles terão um escritório de advocacia público à disposição deles, com funcionários bem pagos, e um departamento inteiro voltado à defesa de interesses que muitas vezes podem ser privados”.

Agentes públicos ficarão mais protegidos que o cidadão comum contra críticas e terão maior poder de censura

Com a criação da Procuradoria de Defesa da Democracia, autoridades públicas poderão ficar mais protegidas contra críticas do que os próprios cidadãos particulares, o que contraria algo que costuma ser ponto pacífico em democracias. As novas regras facilitam o caminho para que membros de qualquer dos três Poderes deem início a processos de censura.

“O ministro Celso de Mello, recentemente aposentado, dizia que o agente público merece ser criticado, que tem de ser criticado, tem de ser sindicado. Isso não significa que a honra dele não mereça proteção, mas o fato de se ser agente público o coloca em uma situação de ser mais duramente criticado do que um cidadão particular. Isso é indiscutível”, comenta Bunazar.

O foro privilegiado, segundo o especialista, tem como um de seus objetivos justamente “garantir que uma autoridade hierarquicamente inferior não se sinta constrangida ao condenar uma autoridade hierarquicamente superior”. O novo decreto implode essa lógica.

Outra ameaça à liberdade de expressão instaurada por decreto pelo governo Lula é o novo Departamento de Promoção da Liberdade de Expressão, criado dentro da Presidência da República. Um de seus objetivos, segundo o texto que o implementa, é “propor e articular políticas públicas para promoção da liberdade de expressão, do acesso à informação e de enfrentamento à desinformação e ao discurso de ódio na Internet, em articulação com o Ministério da Justiça e Segurança Pública”.

Para Bunazar, a utilização de termos como “desinformação” e “discurso de ódio” em decretos governamentais é preocupante e tende a resultar em censura. “Quando eu uso ‘discurso de ódio’, eu me furto a dizer que leis foram violadas, qual o limite do ordenamento jurídico foi ultrapassado. Basta que eu use esta fórmula mágica, politicamente correta – ‘discurso de ódio’ – para que eu bloqueie o seu discurso e agora possa processá-lo judicialmente, por discurso de ódio”, comenta.

“É um axioma: o discurso é de ódio, logo ele está proibido. E por que ele está proibido? Porque ele é de ódio. E por que é de ódio? Porque está proibido. Agora, quem define o que é ódio ou não é? Antes, cabia ao legislador. Hoje, cabe a um ministério qualquer. Isso é bastante preocupante.”

O especialista afirma que a ideia da liberdade de expressão precisa ser alcançada “a partir de um juízo negativo: tudo aquilo que eu não for proibido de dizer, eu posso dizer”. “Isso é óbvio, mas precisa ser repetido no Brasil”, conclui.

Posicionamento da AGU

Após a publicação da reportagem, a Gazeta do Povo pediu esclarecimentos à AGU sobre a criação da Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia. A AGU definiu "desinformação" como "fatos inverídicos ou supostamente descontextualizados levados ao conhecimento público de maneira voluntária com objetivo de prejudicar a adequada execução das políticas públicas, com real prejuízo à sociedade", e disse que se balizará por "precedentes recentes do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o assunto". Confira o posicionamento na íntegra:

No caso específico do que será objeto de atuação da AGU, a desinformação se caracteriza por fatos inverídicos ou supostamente descontextualizados levados ao conhecimento público de maneira voluntária com objetivo de prejudicar a adequada execução das políticas públicas, com real prejuízo à sociedade.

Há precedentes recentes do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o assunto. Esses precedentes balizarão a atuação da nova Procuradoria da AGU, que, em qualquer circunstância, atuará sempre em consonância com os princípios e garantias individuais e coletivas inscritos na Constituição Federal, em especial os relativos ao acesso à informação e às liberdades de imprensa e de expressão. Igualmente, respeitará o princípio fundamental do devido processo legal. Todas as demandas da Procuradoria serão levadas à apreciação do Poder Judiciário.

Importante ressaltar que a desinformação mina a confiança nas instituições públicas, além de prejudicar a democracia ao comprometer a capacidade dos cidadãos de tomarem decisões bem informadas, com impactos sociais, políticos, econômicos e jurídicos de cunho negativo. Do mesmo modo, afeta o trabalho da imprensa profissional e a própria liberdade de expressão.

Sob nenhuma hipótese a Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia cerceará opiniões, críticas ou atuará contrariamente às liberdades públicas consagradas na Constituição Federal. Ao contrário, sua atuação será, exatamente, para proteger essas liberdades. Além disso, ressalta-se que a divulgação de informação com erro não intencional não é desinformação.

O combate à desinformação é voltado para a defesa da integridade das políticas públicas. Essa atuação será baseada nas normas vigentes e nos precedentes dos tribunais que disciplinam o assunto, e também na própria sistemática de atuação das agências de checagem de informações falsas. Já há experiências bem-sucedidas de parcerias dessas agências com órgãos de Estado, a exemplo da realizada entre o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) durante as eleições de 2022. A atuação da nova Procuradoria fortalecerá o papel das agências de checagem.

A AGU também estuda a possibilidade de estabelecer parceiras com outros órgãos entidades da sociedade civil a exemplo dos conselhos nacionais de Justiça (CNJ) e do Ministério Público (CNMP), além da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) para que possam auxiliar o trabalho de defesa da democracia e das políticas públicas.

A Advocacia-Geral da União está, no momento, em tratativas internas para a estruturação da Procuradoria. Essa estruturação, assim como a sistemática e os parâmetros de atuação da unidade, será objeto da regulamentação interna do Decreto nº 11.328/2023. Essa regulamentação deverá ser submetida à consulta pública para permitir que diferentes setores da sociedade, incluindo especialistas e representantes de outros órgãos e instituições imbuídos da defesa da democracia, como a própria imprensa profissional, possam opinar e sugerir aprimoramentos.

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