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A Comunidade Fazenda da Esperança tem 160 casas de recuperação espalhadas em 25 países.
A Comunidade Fazenda da Esperança tem 160 casas de recuperação espalhadas em 25 países.| Foto: Fazenda da Esperança

As comunidades terapêuticas para tratamento de dependentes químicos estão na mira de movimentos de esquerda, como PSOL, partido que compôs a coligação do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Relatório produzido pelo partido e sugestões da equipe de transição recomendaram a suspensão de cerca de 200 normas produzidas pelo governo do presidente Jair Bolsonaro (PL) que beneficiam essas organizações.

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Entre as normas que seriam modificadas ou abolidas está o decreto sobre a Política Nacional sobre Drogas (Decreto n. 9.761, de 11 de abril de 2019) do governo Bolsonaro, que privilegia estratégias de abstinência de drogas como uma das formas de redução de problemas sociais, econômicos e de saúde. Essa diretriz está em sintonia com a atuação das comunidades terapêuticas e contra as políticas dos partidos de esquerda em relação às drogas.

Para o PSOL, o apoio à abstinência e às comunidades de reabilitação seria um “notável desserviço à população”, ainda mais com a presença de religiosos em algumas dessas organizações no combate às drogas. O partido também acusa essas organizações de violar os direitos humanos, pois, para o partido socialista, laborterapia seria “superexploração do trabalho da população usuária”.

O PSOL, como representantes de outros partidos de esquerda, já se posicionou a favor da legalização da maconha, não somente para uso medicinal, mas também para uso recreativo.

O que são as comunidades terapêuticas   

As comunidades terapêuticas (CTs) são entidades privadas, sem fins lucrativos, que realizam o acolhimento de pessoas com dependência química ou outros vícios, em regime residencial transitório e de forma voluntária. O período de acolhimento pode variar de 3 a 12 meses, dependendo da metodologia de cada projeto. As CTs não integram o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS).

Uma das características das CTs é fazer com que o dependente químico interrompa completamente o consumo do álcool e outras drogas, ou seja, o modelo de abstinência. E é essa forma de trabalho que é alvo dos movimentos de esquerda. Em contrapartida, em geral, os esquerdistas defendem o modelo de redução de danos, com a tentativa de minimizar os danos causados pelas drogas, ou até diminuir seu consumo, mas sem deixar de usá-las necessariamente.

Segundo o Diretor Executivo da Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas (Febract), Ricardo Valente, há uma estimativa de que existam cerca de 5 mil comunidades terapêuticas no Brasil. Ele explicou que essas instituições começaram a surgir na década de 50 como uma proposta de transformar o modelo hospitalar em residencial, onde os dependentes poderiam se cuidar, manter o ambiente saudável e conviver com outras pessoas.

Dessas entidades, muitas estão vinculadas a algum movimento religioso. Ricardo lembra que essa característica não é decisiva para avaliar a política pública: o essencial é analisar a eficácia do programa adotado e que toda pessoa seja respeitada independentemente da religião que professa. “Espiritualidade é uma ferramenta de apoio. Fé sempre faz bem, mas dependência química não é um problema religioso. Deve ser compreendido a partir de uma visão biopsicossocial”.

Uma das comunidades que utiliza de valores cristãos para auxiliar os dependentes químicos é a Fazenda da Esperança. Essa comunidade atua há 40 anos e foi fundada pelo Frei Hans Stapel. Hoje há 160 casas de recuperação espalhadas em 25 países com 4 mil pessoas sendo atendidas no total. Nas casas há também a equipe médica e voluntários que auxiliam a organização.

O método de atuação da comunidade é trabalho, espiritualidade e vida fraterna. A proposta de acolhimento é de, no máximo, um ano. “A pessoa decide ir, conhece a metodologia antes e aceita. Esse é o diferencial da comunidade terapêutica. A pessoa livremente decide viver a proposta da casa”, explicou o presidente geral da Fazenda da Esperança, padre José Luiz de Menezes. A organização acolhe dependentes químicos, de álcool, jogos e pessoas com depressão.

Depois que a pessoa decidiu voluntariamente fazer o processo de recuperação do vício na comunidade, o dependente deve seguir a rotina da entidade. Essa rotina tem horário para acordar, refeições, orações, esporte, trabalho e momentos de partilha. Para o padre José Luiz, a espiritualidade “resgata o sentido da vida”. Já “o trabalho tira do ócio e resgata a dignidade de se sentir útil”. “Uma das consequências do vício é o rompimento do vínculo familiar e comunitário. Então, a convivência reconstrói o vínculo familiar e a vida fraterna”, disse.

O responsável pela formação de outra entidade, a Comunidade Bethânia, Daniel Amaral, frisou que outra característica das comunidades terapêuticas, em geral, é a de não atender tantas pessoas simultaneamente, isso faz com que seja possível oferecer um tratamento personalizado e individual. “É uma forma pedagógica de acompanhar o tempo da pessoa. A experiência da pessoa é única e irrepetível, e é necessário olhar para cada um de forma individual”.

Críticas e desafios das comunidades    

Apesar de histórias de sucesso com dependentes químicos, a metodologia das comunidades terapêuticas é questionada não só pelo PSOL, mas também por entidades como o Conselho Federal de Psicologia. Em 2017, a entidade publicou o Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas, produzido em parceria com Ministério Público Federal. Um grupo de 100 profissionais fizeram vistorias em 28 estabelecimentos nos estados de Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rondônia, Santa Catarina e São Paulo, além do Distrito Federal.

O texto aponta falhas nas comunidades terapêuticas como fragilidades técnicas das equipes multidisciplinares, irregularidades envolvendo internações, supostas violações à liberdade religiosa, indícios de violações éticas profissionais, ausência ou carência de infraestrutura e problemas na gestão financeira.

O diretor executivo da Febract, Ricardo Valente, afirma que alguns apontamentos do relatório de 2017 têm fundamento, mas nem todos e não ocorrem na maioria das instituições. Para ele, é importante fechar entidades que não estão preparadas, mas valorizar as que trazem resultados palpáveis. “Não se pode, com base nesse relatório, pensar que toda comunidade terapêutica funcione dessa forma (…) não são todas que funcionam assim”, disse.

Valente destacou ainda que a federação tem consciência desses problemas apresentados e que tenta fiscalizar. A grande quantidade de instituições e problemas na legislação, segundo ele, dificultam esse trabalho.

“A legislação já tem diretrizes, mas essas diretrizes deixam brechas para que determinadas situações de desrespeito aos direitos humanos e liberdades individuais acabem acontecendo”, afirmou Valente. “Mas os governos têm progredido na tentativa de fiscalizar e o Ministério Público tem trabalhado para fechar esses lugares que não há estrutura. Mas é um desafio”, comentou Valente.

Governo Bolsonaro e futuro petista    

De acordo com Ricardo Valente, no governo de Bolsonaro, houve um aumento significativo de vagas nas comunidades terapêuticas. “Investiu-se bastante, foi uma política pública importante”. Antes do governo Bolsonaro, relata, não havia tantos investimentos nessas entidades. “As primeiras vagas vieram do governo da ex-presidente Dilma Rousseff, mas com Bolsonaro esse financiamento ganhou outras formatações”, revelou.

Agora, as comunidades temem que, por motivos ideológicos, o governo de Lula prejudique todas as instituições, sem separar o “joio do trigo” - e desista da ideia de abstenção, que contribui para a recuperação de muitos dependentes químicos.

Para Roselene Amora, fundadora da Comunidade Fonte de Misericórdia, muitos julgam e criticam o trabalho das comunidades terapêuticas sem conhecer essas organizações. De acordo com ela, o governo não consegue auxiliar todos os dependentes químicos e que as comunidades ajudam a atender mais pessoas.

Daniel da Comunidade Bethânia também salientou a relevância dessas organizações, mesmo sabendo que muitas pessoas não irão se recuperar nessas entidades e precisarão de clínicas. “Tem pessoas que não vão conseguir sozinhas, vão precisar de uma comunidade para conseguir se recuperar. Aquilo que as políticas públicas não conseguem fazer, as comunidades terapêuticas podem ajudar”, afirmou.

O diretor da Febract também ressaltou que essas entidades não são para todas as pessoas. Algumas metodologias – como o método de abstinência, criticado pelo PSOL - é para um determinado público. “Mas esse é um dispositivo de uma rede imensa de dispositivos [para dependentes químicos]. Quanto maior a oferta de ajuda, mais usuários se beneficiam”.

Para o próximo governo, Valente espera que o financiamento público se mantenha para as comunidades terapêuticas, mas não somente com a distribuição de recursos. “Esperamos que ofereçam programas de qualificação de atenção e de cuidado do indivíduo. E que façam um programa de financiamento com planejamento, execução e avaliação para que as instituições funcionem com estrutura ética e técnica. De modo que o resultado possa ocorrer de maneira digna e respeitosa”, destacou.

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