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Presidente Lula (PT) e vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB)
Presidente Lula (PT) e vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB)| Foto: Ricardo Stuckert/PR

O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem deixado a porteira aberta para o identitarismo e o radicalismo woke no começo de seu mandato. A tendência perpassa diversos ministérios e se manifesta em audiências, portarias, discursos de autoridades e na implementação de políticas públicas.

Especulações de caráter pouco científico como as teorias sobre gênero e racismo estrutural são tratadas como verdades absolutas e embasam diversas decisões do governo. Derrotar a "machosfera", adotar "linguagem que promova equidade" e combater o "sistema patriarcal" parecem ser necessidades mais prementes, para a alguns setores do governo, do que resolver problemas sociais objetivos de impacto concreto na vida dos cidadãos, como a violência e a falta de saneamento básico.

No começo de março, em plena semana da série de ataques por uma facção criminosa no Rio Grande do Norte, o Ministério da Justiça lançou um programa de segurança pública apoiado em teses caras à cultura woke: o Pronasci (Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania) 2, atualização de um falido projeto cuja vigência entre 2007 e 2012 – no segundo mandato de Lula e primeiro de Dilma Rousseff – coincidiu com o início do aumento exorbitante da violência no país. Entre os cinco eixos de atuação do novo programa está o "combate ao racismo estrutural".

O sociólogo Lucas Azambuja, professor do Ibmec-BH, explica que a expressão "racismo estrutural" é "uma importação de uma leitura das relações raciais nos Estados Unidos por uma corrente de pensamento pós-marxista, que se inspira na visão de mundo marxista para entender as relações entre negros e brancos". "No contexto da sociedade americana pós-movimentos dos direitos civis, que colocaram fim àquela situação trágica da segregação racial, criou-se uma série de bandeiras ligadas às tensões nas relações raciais. De uns tempos para cá, até pela influência de fundações internacionais que financiam, entre outras coisas, pesquisas na área de humanidades, esse termo foi importado, e estão tentando aplicá-lo para orientar políticas públicas. O PT traz isso ao Brasil até como forma de assegurar que determinados quadros de militância participem do governo", comenta.

Invasão de jargões ideológicos da cultura woke tem impacto social

Assim como "racismo estrutural", segundo Azambuja, outros conceitos ideológicos da cultura woke têm sido usados como forma de "capturar politicamente" problemas reais e, às vezes, graves. Com a disseminação desses termos no debate público, é possível usá-los para orientar regulações e, assim, moldar a sociedade de acordo com projetos ideológicos.

"Existe violência contra a mulher. Existem problemas nas relações raciais. Nós vivemos em um país violento. Ou seja, há uma série de problemas reais. E esses termos são uma forma de capturar politicamente esses problemas. É a tentativa de criar uma espécie de monopólio político em torno da questão. Quando eu consigo fazer com que as pessoas abordem o problema da violência contra a mulher a partir da palavra 'feminicídio', quem se opuser a mim será, entre aspas, 'a favor' do feminicídio. O uso da palavra ajuda a deter o monopólio", observa.

No Ministério das Mulheres, termos como "misoginia", "machosfera" e outros jargões da moda do feminismo se tornaram frequentes. No dia 28 de março, em uma audiência pública no STF sobre o Marco Civil da Internet, uma representante da pasta disse, sem mostrar como chegou aos dados, que há 30 milhões de seguidores de canais da "machosfera" no Brasil.

No começo de março, o Ministério da Saúde publicou uma portaria alegando que a divisão de trabalho implementada no SUS (Sistema Único de Saúde) é "machista e racista" e defendendo abertamente a desconstrução dos conceitos de "homem" e "mulher". O documento também diz que o SUS deve contribuir para o enfrentamento do "machismo cultural" e que se devem evitar termos "machistas e patriarcais" no cotidiano institucional dos estabelecimentos de saúde do governo

A ideologia de gênero também tem sido defendida explicitamente em diversas pastas da administração federal, com base em jargões ideológicos e controversos dados que justificariam uma atenção especial ao assunto. No dia 30 de março, por exemplo, o governo assinou uma declaração proposta pela Argentina na Organização das Nações Unidas (ONU) em "reconhecimento à autoidentificação de gênero".

Symmy Larrat, secretária Nacional de Promoção de Defesa das Pessoas LGBTQIA+ do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), já disse que uma das primeiras missões de sua pasta será apagar a expressão "ideologia de gênero" do debate público.

A proposta é estratégica: adeptos da cultura woke buscam propagar o termo "identidade de gênero" para conformar a opinião pública em torno da ideia de que ninguém nasceria homem ou mulher; cada um descobriria ao longo da vida a sua identidade em um imaginado espectro de feminilidade e masculinidade, independente do que a realidade biológica determine.

A palavra "gênero" costuma ser usada em lugar de "sexo" justamente para desconstruir as categorias estanques "homem" e "mulher" e dar a entender que a identidade sexual pode ser criada subjetivamente, transitando pelo espectro mencionado de acordo com o sentimento da pessoa. A expressão "ideologia de gênero", por outro lado, busca enfatizar o propósito anárquico dessas ideias, que, em última instância, servem para desbancar realidades objetivas como o sexo biológico e, assim, estabelecer o reinado das subjetividades no debate público. O propósito do uso de "ideologia de gênero" não é menosprezar a realidade objetiva da existência, por exemplo, de transexuais, mas resguardar a certeza da existência objetiva de homens e mulheres.

Brasil é país com pouca coesão social, e PT se alimenta de exacerbar divisão, diz pesquisador

Lucas Mafaldo, pesquisador em ciência política e pós-doutor em filosofia pela Universidade de Ottawa, diz que o Brasil é, historicamente, um país com baixa "coesão social", isto é, pouco capaz de criar um senso de comunidade e unir a população em torno de propósitos comuns. Segundo ele, isso se deve, em grande medida, ao alto grau de desconfiança que as pessoas têm entre si. Fenômenos como violência urbana, assaltos, golpes financeiros, trapaças em situações sociais, impunidade e descrença na Justiça como instância para solução de conflitos tornam o brasileiro propenso a desconfiar de seus conterrâneos em situações cotidianas.

O PT, na visão dele, é um propulsor da falta de coesão social, na medida em que se beneficia do discurso de divisão. A adesão cada vez maior do PT à cultura woke, que é essencialmente divisiva, é uma manifestação dessa velha propensão do partido. "O discurso do PT desde os anos 1980 e 90 sempre foi um discurso de divisão. Era o patrão contra o empregado, o Sudeste explorando o Nordeste… A carreira toda do Lula foi apoiada nessa ideia de grupos antagônicos. E, embora existam tensões – porque algumas existem, de fato –, esse não é o melhor jeito de criar um ambiente colaborativo", afirma. "O Brasil sempre teve uma cultura muito forte de não resolver as coisas de forma colaborativa, e o PT reforça isso, porque fica constantemente repetindo esse discurso de divisão."

O antídoto contra essa tendência, para Mafaldo, é a busca autêntica por um ambiente de coesão social. "Não é uma questão de indivíduo versus sociedade, mas sim de como criar um ambiente de colaboração e de ajuda mútua que favoreça o máximo de pessoas possível. O objetivo de coesão social é válido independente do debate político. Não vejo com maus olhos quando há uma política realmente inclusiva. Se é uma política que realmente promove coesão social, ela é válida e não deveria ser vista como um princípio de esquerda", comenta.

A tendência do PT, no entanto, é a contrária, diz Mafaldo: promover a desconfiança entre os cidadãos e impedir a coesão social, como reflexo de seu espírito revolucionário. "O PT é, a meu ver, um dos ramos institucionais do movimento revolucionário. Ele age por meio da divisão da sociedade, de jogar um grupo contra o outro. Essa é uma ideia que está bem teorizada mesmo na literatura marxista: a de que você tem que ter uma revolução, e não uma reforma. Há até a ideia de que quem resolve problema social diminui a energia que poderia ser usada para a revolução. Não é nunca do interesse deles resolver os problemas. O interesse deles é alimentar o grau de tensão e de revolta para gerar essa energia revolucionária."

Outro elemento que explica a adesão do PT à cultura woke é a mudança geracional, diz Mafaldo. "As gerações mais antigas da esquerda não se interessavam tanto por essas pautas. E as gerações mais jovens estão realmente interessadas nisso. Acho que há um cálculo de como manter a militância jovem engajada. Eleitoralmente, em termos da maioria da população brasileira, eu chutaria que não são pautas que trazem muito voto. Mas eu acho que os militantes jovens gostam muito dessas pautas. E isso está acontecendo no mundo todo. Na eleição geral, não sei se isso dá muito voto, mas, na capacidade de atrair militantes, acho que faz diferença."

Um último fator que explica o interesse do PT pela onda woke, de acordo com Mafaldo, é a americanização da cultura brasileira, tanto na esquerda como na direita – no caso desta última, em pautas como o homeschooling e o armamento civil. "Há pautas bem americanas até na direita. Por mais que eu até possa concordar com algumas delas, eu vejo que elas chegam ao Brasil importadas de forma errada. A explicação para isso é simplesmente o fato de que a cultura americana produz muita coisa. Tem tanta coisa na internet, tantos vídeos… E, hoje em dia, o inglês é praticamente a segunda língua de muitos brasileiros. A gente erra ao importar o debate sem fazer a tradução para a nossa dinâmica social específica, que é totalmente diferente. Nem a direita nem a esquerda estão fazendo as adaptações necessárias para entender a dinâmica social típica do Brasil", observa.

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