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Paciente mostra curativo nas mãos queimadas: remédio passa por cuidados básicos e papo | Fotos: Daniel Castellano/Gazeta do Povo
Paciente mostra curativo nas mãos queimadas: remédio passa por cuidados básicos e papo| Foto: Fotos: Daniel Castellano/Gazeta do Povo

O que é

"Consultório de Rua" é um projeto do governo federal que atende população mendicante em praças e ocupações. São 20 profissionais divididos em quatro equipes volantes.

Quando e onde

O consultório de rua funciona de segunda a sexta-feira, das 8 às 17 horas, no Terminal do Hauer, Vila Parolin, Rodoferroviária/Mercado Municipal e pontos ocasionais como a Rua Cândido Hartmann.

NA TIRADENTES

Ação em Curitiba é um luxo só: tem até dentista

A história do Consultório de Rua começou há mais de uma década, na Universidade Federal da Bahia. A "turma da saúde" pintou de branco o Pelourinho, e o povo viu que era bom. De projeto acadêmico, em 2012 saltou para a categoria de política pública do governo federal destinada aos municípios, Curitiba entre eles.

A edição local do programa nasceu com expectativas redobradas. O que se justifica: versões semelhantes deram certo em cidades com menos tradição de saúde pública, nas quais são aclamadas como o tratamento que faltava para sarar o povo da rua. Aqui teria de ser melhor ou tanto quanto.

As equipes locais, contudo, em vez do autoelogio preferem seguir os conselhos da vovó: cautela. Sabe-se que não há milagres no atendimento a quem está acostumado à vida na rua. É trabalho de estiva convencer os homens e mulheres "do sereno" a se render à liturgia de consultas, exames, tratamentos em unidades especializadas.

Mas os médicos, assistentes sociais e enfermeiros vinculados ao programa admitem que Curitiba tem "um luxo só" – a presença de dentistas na equipe. É curioso. Basta um deles dizer que é da Secretaria Municipal da Saúde para que os moradores abram a boca e mostrem o dente que está doendo. Contam usar álcool e até o crack como anestésicos. Há quem peça extração no alicate, e a seco, ali mesmo, na Tiradentes. A associação com o herói da Inconfidência é inevitável.

  • João, o
  • Roniel exibe sua carteira de trabalho para a turma da Praça Tiradentes: um dos trunfos do projeto
  • Estagiárias da área de saúde conversam com morador em situação de rua na Praça Tiradentes: fora dos padrões, atendimento implica em longas audições. É fora do padrão, dizem os participantes
  • Candidato a novo mendigo gato, rapaz em situação de rua mostra pontas dos dedos queimadas pelo crack: depois do atendimento, a conversa
  • João, o
  • João, o

"Como é que a gente faz para não gostar mais disso?", pergunta uma usuária de drogas à enfermeira que lhe faz curativos, no meio da tarde, em plena Praça Tiradentes, Centro de Curitiba. A mulher vive na mendicância e conta que acaba de apanhar de seu companheiro. Está confusa. Tem machucaduras nos pés.

VÍDEO: Assista a um vídeo sobre o trabalho do Consultório de Rua

FOTOS: Veja mais fotos sobre o Consultório de Rua

Depois de acalmada e atendida, mistura-se às demais pessoas que recorrem, de segunda a sexta, das 8 às 17 horas, aos serviços do "Consultório de Rua", projeto da Secretaria Municipal de Saúde iniciado há um ano em espaços como o Terminal do Hauer, a Vila Parolin e a Rodoferroviária/Mercado Municipal. Pontos ocasionais podem ser incluídos na lista, a exemplo de um cortiço instalado num prédio abandonado da Cândido Hartmann.

Carne viva

O Consultório de Rua segue a lógica "a montanha vai a Maomé". A população que dorme nas calçadas e embaixo das marquises na capital (algo como 4 mil pessoas, de acordo com os movimentos de apoio a moradores de rua) vive sob a égide da informalidade.

Por informal entenda-se dificuldade com horários e resistência a rotinas. Em outras palavras, os moradores de rua tropeçam na necessidade de novas consultas –mesmo com machucados em carne viva – e demonstram inabilidade crônica para tomar medicamentos. O único remédio é ir onde o povo está, tarefa assumida por 20 profissionais da saúde divididos em quatro equipes itinerantes. O consultório são eles.

Não tem muito segredo: a ambulância estaciona e a turma do jaleco desce, feito uma aparição. É o que basta para que o hospital ao ar livre fique lotado. Oficialmente, são em média 40 atendimentos por dia. Na prática, difícil calcular: o desempenho desafia as contas de multiplicar. Na praça, com médicos e mendigos juntos, tudo acontece "ao mesmo tempo agora".

Enquanto um profissional faz curativos no ambulatório montado dentro da van, outro senta no meio-fio com um morador e outro dedilha uma música ao violão, estratégia para reunir a turma em roda de conversa. Bolas de vôlei e fantoches também fazem parte da consulta. Enquanto cantam e brincam, os pacientes contam onde dói – e não só no corpo. "Às vezes, eles recebem o tratamento como um carinho. Só são desconfiados na hora de dizer o nome...", ilustra a psicóloga Thaís Krukovski, 35.

Melhor remédio

"Sinto uma atração terrível pela favela. Não quero, mas acabo indo até lá atrás de drogas", confessa o rapaz alto, magro, loiro – um boa-pinta que já morou na Europa. Sua confissão faz eco na Tiradentes. Tem 30 anos e pronto: é aclamado como versão 2014 do "mendigo gato". O moço chama atenção. Solto na rua, já foi assediado por um estranho, que o convidou para fazer um filme pornô. Não aceitou.

A equipe do consultório o conhece e lhe dedica um remédio "extra". Depois dos curativos nos dedos – queimados pelo manuseio do cachimbo do crack –, oferece uma boa dose de conversa, mais uma vez. Ouvir e ouvir é parte do processo, avisam. E acrescentam: não aprenderam isso na faculdade. "Foi na marra."

"Ouvi-los é a única maneira de criar vínculos. Se no final de um dia de trabalho conseguirmos que um deles se insira num programa de reabilitação, ufa, ganhamos uma batalha", descreve a psicóloga Adriane Wollmann, uma mulher alta e articulada, oriunda da saúde mental e atual coordenadora do Consultório de Rua em Curitiba. "Não medimos nosso êxito pelo número de consultas feitas, mas pelas pessoas de quem nos aproximamos de fato. Essa é a lógica", emenda o dentista Alan Sierakowski, 52 anos, entusiasta da proposta.

Vitória?

Mesmo sem metas heroicas, as estatísticas do consultório seguem no crescente. Do segundo semestre de 2013 até agora, os profissionais engajados no programa atenderam pouco mais de mil moradores em situação de rua. O número equivale a 25% dessa população. Como a maioria retorna para novos atendimentos, o número de consultas ultrapassa 7 mil procedimentos, de pequenos curativos – aqueles de mãe – a encaminhamentos para internação. Os problemas mais comuns são tuberculoses, DSTs e dependência química.

Se os gestores consideram uma vitória? Sim, consideram. É quase romântico, dizem – um exercício da medicina que parecia perdido em algum lugar do passado. Na praça, médicos, enfermeiros e assistentes sociais estão em missão. Pisam em território desconhecido. Não seguem rotinas rígidas. Tomam chuva e sol. Precisam aprender – inclusive a falar.

Um dos desafios é decodificar gírias. "Tô na laje" significa "dormindo na rua"; "galo" equivale a mochila, esse "caracol" em que os moradores de rua levam sua casa. O vocabulário ajuda a entender o mundo estranho em que os pacientes transitam. É lá, afinal, que tudo começa.

As várias famílias de rua da praça

A assistente social Vanessa Crespo formulou uma frase sob medida para traduzir sua experiência de atendimento na rua. "Eu vivia num aquário. Agora me sinto no fundo do mar", compara, em meio à muvuca do Centro. Quem passa, de forma mecânica, como que se lhe tivessem dado corda, pode não notar, mas a Praça Tiradentes é o mais incomum dos lugares – moradores das mais diversas castas e estágios dividem o território com taxistas, turistas, lojistas, fiéis da Catedral e circulantes.

Para a turma do Con­­sultório de Rua, uma verdade se impõe a cada novo expediente: naquele quarteirão não há uma família de rua, mas várias, formadas por laços de preferência (os do álcool e os do crack, por exemplo) ou escolaridade (os estudados que perderam tudo e os que não estudaram porque nunca tiveram nada).

Nenhum desses grupos se dá a conhecer num estalar de dedos. É do jogo – o povo da rua é escaldado e põe à prova quem se aproxima. Descobrir o que existe por trás dos tubões – que ali estão sempre transbordando na garrafa pet, ao custo de R$ 1 por cabeça – exige, digamos, sentar no chão. "Entendi isso. Sento na grama e me coloco na altura deles. É assim que começa", descreve a auxiliar de enfermagem Reny Kozlowski, 44 anos, ocupada dos testes de glicemia, escarro, coleta de sangue e bom papo.

Desse ponto de vista – o rés-do-chão – se pode ver um cenário que passa despercebido aos mais ligeiros. Num ponto, perto dos taxistas e dos visitantes à espera da Linha Turismo, ficam os cachorros de rua Marley e Laika, assim batizados na base da admiração. O jamaicano Marley tinha alguns bagulhos em comum com a turma da praça. E Laika era a cachorra que os russos mandaram para o espaço, em sacrifício, "uma injustiça". Os dois cães ganham comida de quem tem e afagos de quem não tem nada. Lucro.

Enquanto os cães se folgam, chega uma espécie de celebridade local – Eduardo, o "Alcatra", sobre o qual pesa uma lenda do sereno: "Ele estudou Direito", dizem. Há outro Eduardo por perto. Tem 46 anos, oriundo do topo da pirâmide educacional – o "Psicólogo" é o intelectual da Tiradentes. Introvertido, aproxima-se da turma do consultório, mas prefere a sombra e a leitura de algum romance achado no lixo.

O jeitão reservado do "Psicólogo" contrasta com o resto. Perto dele, um oferece emprego em voz alta: "Quem quer guarda-chuva para vender?". Outro reclama da prefeitura. Perto dele, João, o "Gordinho", 25 anos – camiseta azul com estampa de Nossa Senhora Aparecida – causa impressão contando detalhes do assassinato, numa noite passada, de Sebastião, o "Barbicha". "E eu disse: acorda pessoal, que o Barbicha está morto..."

Concorrência para o João, só mesmo do Roniel, 23, nove de rua, ao exibir sua carteira de trabalho a quem interessar possa. Para festejar a conquista, quase rola uma "festa da tubaína batizada". Quase. Na presença dos médicos e enfermeiros, o consumo de álcool e de drogas cai próximo de zero. A rotina muda. Impossível não prestar atenção no momento em que o dentista Alan Sierakowski conversa com o trecheiro Nelson Maciel e anota o que ouve num caderninho. Sim, ele coleciona histórias de relento. "Metade do tempo eu gasto conversando com eles. Não estou aqui para julgar ninguém. Acho fantástico. A Praça Tiradentes é democrática", resume.

Moradores de rua são atendidos por equipe itinerante

O projeto começou no ano passado e já ajudou mais de mil dos cerca de quatro mil moradores de rua de Curitiba. A principal tarefa é criar vínculo com as pessoas para ajudá-las a superar o motivo maior da exclusão, geralmente, brigas familiares, vícios e problemas psicológicos.

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