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No Condomínio Social é preciso ajudar nas tarefas domésticas e gerais, além de ter emprego fixo | Arquivo/ Gazeta do Povo
No Condomínio Social é preciso ajudar nas tarefas domésticas e gerais, além de ter emprego fixo| Foto: Arquivo/ Gazeta do Povo

Por dentro da casa

Condomínio Social pode inaugurar capítulo no atendimento à população de rua:

O local

O antigo seminário dos Servos dos Pobres, sede do Condomínio Social, fica na Rua Júlia da Costa, 3.410. O prédio tem três pisos, peças amplas, bom acabamento, atmosfera espartana. Nos corredores se vê placas com o número do apartamento e o nome de cada condômino. Eles se emocionam ao serem chamados de "moradores". Distribuem-se por afinidade, embora a "panelinha" seja coibida. Doze servidores trabalham no local, em três turnos.

As regras

É preciso ser diligente com a higiene pessoal e aceitar escalas de serviço doméstico. Um cartaz, na porta do refeitório, indica as tarefas da semana, da louça à limpeza geral. Não se pode fumar dentro e na frente da casa – nesse caso, para não contrariar os vizinhos. Criou-se um disputado fumódromo nos fundos.

O perfil

Ainda não houve tempo para uma pesquisa sobre o perfil sociocultural dos moradores, mas o local é o retrato do povo da rua. Há profissionais diversos (fotógrafo, biólogo, enfermeiro e cabeleireiro). Gente que morou no exterior e gente que passou pela rua na infância. Dependência química, transtornos mentais, abandono familiar fazem parte da biografia dos 37 hóspedes.

A vizinhança

Em dezembro passado, a FAS visitou os vizinhos do seminário. Temia-se rejeitação ao projeto. Houve quem falasse em abaixo-assinado. Visitas ao condomínio e pactos de convivência, segundo a FAS, garantem a aceitação do projeto. Como o seminário estava fechado, a ocupação trouxe mais segurança para a região. Um pedagogo da redondeza, voluntário, ajuda no estatuto do projeto.

Religiosidade

A capela do seminário não fazia parte do aluguel, até a congregação dos Servos dos Pobres, de forma espontânea, entregar a chave à direção. O local tem missas semanais, mas também um culto da Assembleia de Deus, iniciativa de um dos moradores.

6 abrigos fazem atendimento à população em situação de rua em Curitiba: Comunidade Hermon (80 vagas); Associação Padre João Ceconello (45); Casa do Servo Sofredor (50); Toca de Assis (20); Casa dos Pobres São João Batista (50); e Confederação Evangélica (300).

"Repúblicas"

São as Unidades de Acolhimento Institucional (UAI), para atendimento personalizado à população de rua. São elas: Rebouças (100 vagas); Jardim Botânico (100); e Boqueirão (25). Em paralelo, há quatro "Centro Pop" – dois no Centro, um no Portão/Água Verde e outro no Boqueirão.

"Estamos rindo à toa..." Com essa frase, a servidora municipal Niucéia de Fátima Oliveira, 51 anos, resume a experiência que vive desde o início deste ano. É inédita, até onde se tem notícia. E se chama "Condomínio Social", nome provisório do projeto que hospeda 37 ex-moradores de rua em um seminário católico desativado, no bairro Campina do Siqueira, em Curitiba. O local, diz-se, encontrou seu destino: pertence à congregação religiosa italiana Servo dos Pobres, surgida no final do século 19 para acolher os desvalidos.

A inauguração oficial do condomínio acontece hoje, às 10 horas, no Salão de Atos do Parque Barigüi, com a presença da ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Tereza Campello. Parte dos moradores estará lá, para prestigiar o momento que assistentes sociais como Niucéia consideram histórico, uma vez que a ideia tende a pautar iniciativas semelhantes em outros pontos do país.

Em sua maioria, os condôminos cumprem jornada de trabalho em supermercados, salões de beleza, restaurantes e shoppings. Ter emprego é a primeira condição para serem aceitos na casa. A segunda é estar próximo da autonomia financeira e emocional, de acordo com avaliação feita pelo corpo técnico da Fundação de Ação Social, a FAS, que responde pelo programa. Para atestar o estágio de equilíbrio dos hóspedes, dispensou-se ali a presença do posto da Guarda Municipal, diferente da norma que rege outros endereços da fundação. Ainda que não trabalhe com planos de metas e espartilhos do gênero – "estamos em um laboratório", avisam – a previsão é de que nenhum morador permaneça ali por mais de um ano e meio.

Não são os únicos requisitos. Ainda que a fundação rejeite qualquer classificação que coloque o condomínio como "última etapa" de um processo de reinserção social – nos moldes das redes de autoajuda, alcoólicos ou neuróticos anônimos –, dentre todos os seus equipamentos esse é o que tem maior grau de exigência. Integrar o projeto exige adesão a horários, escalas de serviço, cuidar da própria roupa, cozinhar e lavar louça, limpar casa, ter vida comunitária. E boas relações com a vizinhança.

Sem filas

Por essas razões, não há fila de espera. Mesmo diante das excelentes condições do condomínio, a demanda é modesta. Com 23 quartos, o prédio de 2 mil metros quadrados poderia abrigar 70 pessoas, mas atualmente há apenas metade disso.

"Ao saber como funciona, muitos desistem de pedir uma vaga. Quem viveu como a gente tem dificuldade em lidar com essa organização toda", comenta um dirigente do Movimento Nacional do Povo da Rua, na comunidade desde fevereiro. "Já tivemos desistentes. E houve quem perdeu a vaga, depois de sumir 15 dias. Há quem não fique ao sentir a rotina. É natural: estamos oferecendo uma espécie de gestão conjunta para essas pessoas", comenta uma das coordenadoras, a assistente social Marilis Baumel, 56 anos. Semanas atrás, vendo a grama alta, Marilis perguntou quem se habilitava para a jardinagem. Marcos e Jorge levantaram a mão. A tática se repete em outras rotinas. "Diante de um problema convocamos uma assembleia com eles e perguntamos ‘e agora, como vai ser?’", ilustra Nilcéia.

A expectativa da prefeitura é identificar cada vez mais gente preparada para viver no condomínio – oficialmente a cidade tem perto de 2,7 mil pessoas morando nas calçadas. Para o movimento social, há o dobro disso. "Pensávamos que teríamos um número grande de candidatos habilitados para dividir um quarto com outras pessoas e cumprir tarefas", admitem as assistentes, sem deixar de declarar que essas frustrações são comuns à ação social. Mas os resultados ajudam a FAS a entender melhor as dinâmicas que regem os mendicantes.

Sobre eles

A epidemia do crack e os avanços na compreensão dos transtornos psíquicos – a exemplo das bipolaridades – cada vez mais convencem assistentes e psicólogos de que a espiral da pobreza é muito mais vertiginosa do que as antigas cartilhas de socorro aos necessitados podiam prever. "Estamos convencidos de que a ida para a rua está relacionada com os transtornos e que não raro a droga passou a ser usada para suprir a ausência de tratamentos adequados. Hoje um deles se convenceu a procurar ajuda no SUS. Ganhei o dia", conta Marilis Baumel.

Apesar do pouco tempo da experiência – meio ano –, o condomínio confirma o que se verifica na chamada "república de pessoas em situação de rua", instalada ano passado no bairro Rebouças, para cem moradores. Em grupos menores é possível conhecer a história de cada hóspede, personalizar o atendimento e promover de fato a reintegração.

Em endereços de atendimento de massa é quase impossível controlar o uso de drogas e bebidas. Misturados, moradores em estágios diferentes acabam sendo expostos a entorpecentes e nivelados por baixo, voltando sempre ao ponto em que estavam. Não à toa, parte da turma do condomínio se dirige ao albergue com a mesma amargura com que se refere às marquises. Mas melhor mudar de assunto – a turma dali está na fase de falar em alugar apartamentos, abrir um negócio e, quem sabe, "fazer as pazes com patroa". Como Nilcéia, também há entre eles quem esteja rindo à toa.

Painel

Os moradores do Condomínio Social do Brasil deixaram o rótulo de "mendigos" embaixo das marquises por onde passaram. Agora recomeçam:

O feliz

Marcos Fabrício da Silva, 38, o Marquinhos, bate no peito para falar do projeto. "Isso vai ficar para os outros. É uma coisa nova, que tem tudo para dar certo. Aqui a gente vê união", elogia ele, que quer deixar para trás a dor das perdas familiares, o passado na rua e, quem sabe, aprender a cozinhar. "Daqui quero ir para minha casa."

O inconformado

Marcelo Viana Garcia, 38, prepara-se para o Enem, sonha estudar Sociologia ou Antropologia. Fala de Machado de Assis e Luis Fernando Verissimo e também de Osho, o filósofo indiano, que tem provocado "um despertar da consciência". É inconformado. Não tem histórico de rua, mas rejeita a sociedade de consumo.

O aventureiro

Jorge Costa Maria, 46, como ele próprio diz, conheceu a "vida loka", mas acha que foi pouco, diante das histórias mais dramáticas que ouve. Acabou nas ruas, indo bater na porta do Resgate Social. O convite para morar no condomínio foi saudado. "Aqui sou bem tratado". Faz curso de construção e limpeza.

O esteta

Ronaldo Jaimes, 36, morou na Espanha e também embaixo das marquises da Rua XV. Teve boa casa e escola, mas também o consolo dos albergues. Empregos nos melhores salões e a fila dos sopões. "Minha família desistiu de mim". A retomada vai bem, com planos profissionais e aproximação com os filhos.

O fotógrafo

Felipe Araújo Cintra Carpinelli, 54. "Cheguei a trabalhar como servente de pedreiro", diz o fotojornalista com 35 anos de carreira e passagens por veículos como os hoje extintos Jornal do Brasil e Istoé/Sr. Não passou pela rua, mas o condomínio veio em seu socorro, demarcando a retomada.

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