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Pessoas atendidas pelo Albergue São João Batista, em Curitiba: diferença começa cedo, logo na recepção dos enfermos e dependentes químicos | André Rodrigues/ Gazeta do Povo
Pessoas atendidas pelo Albergue São João Batista, em Curitiba: diferença começa cedo, logo na recepção dos enfermos e dependentes químicos| Foto: André Rodrigues/ Gazeta do Povo

A "Rodo" e o princípio de tudo

A sala em que trabalha a assistente social Fátima Nadolny, 52 anos, na Rodoferroviária de Curitiba, é repleta de mapas pelas paredes. São necessários. Pela Casa da Acolhida e do Regresso, como o local foi batizado, passam diariamente entre 30 e 50 migrantes à procura de lugar para dormir, colocação profissional ou em busca de passagens de ônibus. Quase metade vem de outros estados e 78% do total querem oportunidades na construção civil. "É a rádio peão, anunciando que tem emprego na cidade", comenta Fátima.

De volta para casa

Em 2012, até outubro, foram emitidos 3.096 bilhetes rodoviários – somando R$ 247 mil. O número dos que receberam passagem de volta para casa é o equivalente a 20% dos atendimentos. Dos que chegaram na cidade, 57% conseguiram se firmar, parte deles com a ajuda da própria Casa da Acolhida – um serviço da Fundação de Ação Social. A FAS identifica os que estão mais aptos a se integrarem ao mercado de trabalho, indica albergues e acompanha os recém-chegados por 30 dias, até que possam responder por si.

Os integrados formam um grupo pequeno. Nos dez primeiros meses de 2012, 173 migrantes estavam com documentação em dia e tinham boas qualificações profissionais. O cenário da "Casa" – na verdade um guichê – é de extremos. De um lado há o casal Sílvio de Carvalho, 51 anos, e Sueli Waldrigues, 49, – ele motorista, ela educadora. Vieram de Palmeira, Santa Catarina. No próximo mês vão morar no Albergue São João Batista, até conseguirem emprego. Têm chances.

Vulnerabilidade

De outro lado, "Maria", 33 anos, oito filhos – a mais velha com 18 e o mais novo com 1 ano. Veio de Garuva, Santa Catarina. Esmolou pelas ruas de Curitiba e pediu à FAS que os enviasse para Bela Vista do Paraíso, no Norte do Paraná. Trabalha no campo, ora colhendo bananas, ora laranjas, carregando os filhos, cuja relação com a escola é frágil. A assistência social é acionada em todos os cantos por onde a mãe passa: foi sua segunda vez na Acolhida em 2012, sem solução e sem escalada.

Interatividade

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"Escalada". Essa palavra com poder instantâneo de levar ao topo de uma montanha tem um sentido particular para aqueles que trabalham com os muito pobres, os dependentes químicos e os abandonados. Estar em "escalada", dizem, é estar de passagem para uma forma de vida mais organizada, com emprego, moradia e retomada dos laços familiares.

Não são muitos os "escaladores", é verdade. Na Casa de Apoio João Dorvalino Borba – um espaço de convivência e capacitação mantido pela Fundação de Ação Social (FAS) na Avenida Visconde de Guarapuava, no Centro de Curitiba – estima-se que 5% dos 400 atendidos estejam nesse estágio. Quando a turma da "escalada" se manifesta provoca emoção entre os servidores e representantes das seis ONGs que atuam no local. Um dos sinais de que alguém "está chegando lá" é quando senta ao computador para fazer um currículo.

FOTOS: Veja slide show com sete histórias de pessoas "de passagem"

Não há receita pronta para fazer alguém "escalar". Um mesmo remédio pode trazer resposta rápida – como aconteceu com Juliano Carvalho, 30 anos. Ou levar décadas, a exemplo de Luiz Henrique Fagundes, 47. Juliano e Luiz vieram de mundos bem diferentes. Enquanto o primeiro saiu da classe média, tinha emprego e família, o segundo conheceu a vida na rua já aos 12 anos, permanecendo assim até chegar à vida adulta.

A "perdição" de Juliano foram as drogas. A de Luiz, a cachaça. Os dois agora fazem juntos uma oficina de serigrafia na Casa João Dorvalino. O desenho de um relógio nas camisetas que ilustram para vender chega a ser profético – a seu tempo e modo, esses dois homens conseguiram se organizar, domando um dos piores estragos causados pela pobreza e a drogadição extrema: a falsa sensação de liberdade.

Cinematográfico

À revelia da visão algo romântica que a mendicância ainda invoca – um "efeito Carlitos" –, os estragos da sarjeta podem ser irreversíveis. Sem emprego, amigos e família, mas também sem obrigações, essas pessoas compensam a ausência do abrigo, do conforto e do afeto com a idealização de uma vida sem regras, da qual não conseguem abrir mão. "O desejo passa a ser confundido com um direito. É um estado de vida impulsivo. Quando querem algo, querem naquele momento", explica a psicóloga Gisele Santos Brito, 29, que atua na "João Dorvalino".

Em meados da década de 1990, o educador social Arly Brasil, 43, começou a entender esse mecanismo. Junto com Pedro Forcadell e com o microempresário João Dorvalino – o que dá nome à casa da FAS –, passou a distribuir um sopão na Praça Tiradentes. Calcula ter servido 1,5 milhão de refeições de lá para cá. Mas logo às primeiras pratadas entendeu que não podia resolver apenas os imperativos da fome e decidiu incluir a capacitação profissional na ação. Sem esse elemento, não haveria "escalada".

Os mendicantes, dependentes e afins – ainda que se distanciem da sociabilidade – criam seus organogramas dignos das grandes empresas, não raro como forma de resistência às mudanças. Na Casa João Dorvalino, por exemplo, são famosos os "Dingo Boys" – moradores de rua que andam asseados e são capazes de identificar uma roupa de grife nos sacolões do bazar. Há os "Eixos", mais politizados e hábeis em provocar enxaquecas nos atendentes; e os grupos de alcoolistas e o dos gays. Tendem a ficar juntos nas refeições. E a defender seus interesses imediatos.

Perfis

Embora pareça uma mera curiosidade, o poder de organização entre eles tende a ajudar a "escalada". Um grupo pode ter mendigos crônicos, que ignoram outra forma de vida social, mas também jovens como Juliano, cuja motivação é, inclusive, dormir na própria cama e tomar um banho quente e demorado, como antigamente. Simples como isso: a convivência entre diferentes provoca desejo de mudar.

"Há entre eles quem fale inglês, jornalistas, químicos, policiais militares. Muitos me mostram o local onde um dia trabalharam", conta a assistente social Cynthia Takahashi de Lima, 43, confirmando a mudança de perfil dos deserdados. Tanto quanto as habituais histórias de carência, motivo clássico para viver nas ruas, eles relatam crônicas de luto profundo e mágoas familiares difíceis de superar. É a mendicância ressentida. "Temos de provocar sonhos nessa gente", resume Jozé Roberto da Silva, 38, o artista plástico que ensina serigrafia na "João Dorvalino" e imprime relógios nas camisetas, contando com eles quantas horas faltam para concluir a "escalada".

O milagre da Rua Piquiri

O Albergue São João Batista, no bairro Rebouças, é único entre os "lugares de passagem" em Curitiba. Raros espaços conseguem atender tantas pessoas e com necessidades tão diferentes. Entre os aproximados 190 usuários do casa há pacientes vindos do interior, em tratamento nos hospitais da capital; mulheres vítimas de violência doméstica – ali abrigadas em companhia dos filhos; migrantes e trecheiros que desembarcam na capital. Some-se a esse grupo 100 crianças de creche e contraturno, oriundas, em parte, da vizinha Vila das Torres.

Se a variedade do público impressiona, a sobrevivência do albergue não fica atrás. Criado em 1954 por Januário de Souza, caixa da Rede Viação Paraná Santa Catarina – depois da morte de um homem a quem não pôde ajudar –, a casa, como se diz na linguagem popular "se vira nos 30" para manter as portas abertas. São 40 funcionários, até 600 refeições por dia e custeio modesto de R$ 12,97 per capita, supridos pela prefeitura.

"Já vivi milagres aqui", conta o engenheiro Rafael Pussoli, 45 anos, voluntário desde 1986 e hoje à frente da obra. Ele coleciona um rosário de pequenas histórias sobre as contabilidades que fecharam graças a doações anônimas, inclusive no valor exato do que se devia. É preciso R$ 80 mil por mês para sustentar o albergue. Fica na esquina das Ruas Brasílio Itiberê com Piquiri, cheira a sopa e tem tantos puxadinhos que sozinho qualquer um se perderia no seu interior.

"Vi muitas pessoas encontrarem seu norte depois de passarem por aqui. É um lugar de grandes dramas humanos", atesta Rafael, diante de Iara Silva de Mattos, 55; Maria Sirley Telles, 56; e Vilmar Pereira, 52. Iara foi acolhida depois de ser espancada por uma patroa; Sirley se trata de um câncer; Vilmar, policial militar aposentado, precisou do socorro do albergue tantas vezes na vida que se tornou um misto de hóspede e voluntário.

Há sofás e cantos acolhedores em que essas pessoas podem conversar. "Trocamos telefones", diz Vilmar. Para a assistente social Sílvia Libonati, 38 anos, o albergue não é apenas generoso ao máximo, é diferente de tudo o que já conheceu. "A gente nota já na hora da acolhida".Passageiros

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