Há exatas quatro décadas, a Geada Negra dizimou as lavouras cafeeiras do Paraná, então o maior produtor brasileiro, com 850 milhões de pés. O “dia D”, 18 de julho de 1975, data em que os termômetros despencaram abaixo de zero, ainda está na memória dos que viram “o Norte se acabar”. Não é exagero: trata-se de um dos maiores golpes que atingiram as lavouras do país. Seus efeitos, tamanhos, ainda estão sendo digeridos.
A série
A série de reportagens Geada Negra foi veiculada pela Gazeta do Povo entre os dias 12 e 14 de julho. As reportagens contaram como a geada impactou a formação do Paraná até os dias de hoje. Pessoas que viveram aqueles dias de 1975 contaram como foi ver todos os pés de cafés queimados e como a vida delas mudou por causa da Geada Negra.
O fenômeno climático legitimou a voz dos setores da sociedade que pediam o fim da monocultura cafeeira – à revelia das consequências que traria para a imensa população rural paranaense. A ocupação do campo reduziu 60% nos 40 anos que se seguiram– passou de 4,5 milhões de pessoas para 1,5 milhão.
A nova política agrícola afetou também as cidades, que receberam os órfãos das lavouras. Curitiba cresceu a índices de 5,3% ao ano na década de 1960, quando a falência das lavouras era uma crônica anunciada; e 4,8% ao ano na década de 1970. São índices altos demais quando se é preciso prover saúde e escola para os recém-chegados.
A série de reportagem Geada Negra 40 anos, publicada pela Gazeta do Povo entre os dias 12 e 14 de julho, motivou muitos leitores a contarem suas experiências vividas em 1975. Confira alguns relatos:
O Fusca
“Lembro-me bem daquele dia [18 de julho]. Morava em Nova Esperança [Norte do Paraná]. O meu Fusquinha ficou congelado, não pegava de jeito nenhum. Foi uma tragédia para a região.”
Não se apagará
“Eu tinha 7 anos na época e morava em um pequeno sítio em Ivaiporã [Norte do Paraná]. Lembro que algum tempo depois da geada foi arrancada toda a plantação de café, pois secou tudo. Passava-se um cabo de aço em volta do tronco do café e puxava com um trator. Não restou outra alternativa senão mudar para a cidade, já que meu pai tinha falecido e éramos em seis irmãos. É uma lembrança que não se apagará. “
Tchau, colegas
“Foi um dos dias mais gostosos da minha infância. Pudemos brincar no gelo, artigo de luxo na lavoura. Uma tia encheu uma vasilha de gelo com açúcar para a gente chupar. Foi em Lidianópolis [Norte do Paraná]. Os pés de café abasteceram os fornos por anos. Em 1976, a gente perguntou para a avó ‘que planta era aquela?’. Ela disse: ‘Feijão soja’. Depois vieram os pôsteres, mostrando cafezais carregados, mas lá em Rondônia. Os colegas da escola começaram a ir embora. Em cidades como Arapongas, apareceu o primeiro prédio. A paisagem mudou.’
Cheiro do frio
“Depois de 18 de julho de 1975, nunca mais fui o mesmo. Retirados os eventos familiares, talvez seja a data mais marcantes de minha infância. Nasci em Paranavaí, vivi três anos em Londrina, morava em Apucarana [no ano da geada].
Tinha 9 anos. Mesmo com todo aquele frio, fomos para a rua brincar. Naquele dia, as brincadeiras eram pisar na grama e ouvir o barulho do gelo quebrando, ver as roupas duras nos varais, passar a mão sobre os carros para tirar a espessa camada de gelo, arrancar lascas de gelo de torneiras e beber a água quase congelada, criar vapor com ar que saía da boca e sentir o cheiro do frio. Parece estranho, mas se frio tem cheiro, aquele foi o dia em que eu o conheci.
Ser paranaense, especialmente do Norte, na década de 70, era ter uma relação umbilical com o café. Entre as minhas lembranças de infância, a fazenda de café é uma das principais: o terreirão e as casas dos moradores formando pequenas vilas.
Mas o que me torna mais saudosista é a recordação do cheiro de café na torradeira de bola, colocada muitas vezes em cima de um fogão a lenha. Depois, o grão era moído manualmente, com moedor à manivela, para finalmente ser passado em coador de pano. Marcel Proust escreveu que o olfato e o paladar nos levam ao passado. Toda vez que sinto o cheiro do café e o provo, a memória me leva para o Norte do Paraná.
O principal do 18 de julho de 1975 não foi o que ocorreu naquele dia, mas o desencadeamento do evento. Muitos saíram do campo e foram para as cidades. Muitos saíram de cidades pequenas e foram para maiores. Muitos saíram de cidades grandes e foram para a capital. Muitos saíram do Paraná. O 18 de julho nunca mais saiu das vidas de quem morava no Paraná naquela época.
Como paranaense, tenho convicção de que nunca mais fui o mesmo. Sinto ainda nos meus ossos o frio de 18 de julho . Minha alma paranaense mudou profundamente.”
Porcenteiros
“Eu lembro bem daquela manhã [18 de julho de 1975]. Quando a mãe abriu a porta da velha casa de madeira em que vivíamos, lá fora tudo estava congelado – as roupas no varal, a água no tanque e as plantas no quintal. Nós morávamos na Rua Guimarães Rosa, hoje um bairro nobre em Goioerê [Noroeste do Paraná]. Naquela época, até boiada passava na rua.
Já adolescente, entrei para o Grupo Teatral Águas Claras de Goioerê, o Grutac. Pesquisamos a vida de agricultores que eram chamados de ‘porcenteiros’ [ganhavam 40% do que colhiam]. Eles viviam com suas famílias em colônias . Eram explorados pelos latifundiários. Quando buscavam seus direitos, acabavam perseguidos e até assassinados. Com o trágico fenômeno da geada, os porcenteiros foram os mais prejudicados.
Sobre o espetáculo teatral O Porcenteiro, o Grutac ganhou vários prêmios e viajamos pelas principais capitais e festivais de teatro amador. Talvez o sucesso da peça tenha sido gerado pelas emocionantes histórias de vida de muitas pessoas do campo que foram abandonadas após aquele fenômeno meteorológico.”
Mecanização
“Com certeza, a mecanização ajudou a minguar a cafeicultura. Porém, se não houvesse a Geada Negra de 1975, talvez o processo tivesse sido menos traumático. Há de se lembrar também que muitas pessoas tiveram sucesso se estabelecendo em outros lugares e dando oportunidade aos filhos de estudarem, o que não era possível no campo.”
Vida nova
“Meu avô materno perdeu algo em torno de 70% da fazenda... Meu pai era mestre carpinteiro e veio para cá [Curitiba] em 1978, já que na minha cidade [Ivaiporã] as coisas ficaram difíceis. O pai trabalhou em obras e acabou como professor no Detepar – dava cursos de pedreiro, encanador, eletricista, etc. Formou muita gente que vivia da agricultura, mas que teve de mudar de vida.”
Tristeza
“Eu nasci em São Pedro do Ivaí [Norte do Paraná]. Quando veio a última geada [1975], acabou o fôlego da minha família. Tivemos que mudar do Paraná para São Paulo. Nós e muitas outras pessoas. Momento triste no estado.”
Sempre
“Meus avós e bisavós sempre me contavam essa história [da Geada Negra] com muita dor. Para eles foi irreparável.”
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