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 | Alexandre Mazzo/Gazeta do Povo
| Foto: Alexandre Mazzo/Gazeta do Povo

Helen Muralha

A médica Helen Anne Butler Muralha é uma das obstetras e ginecologistas com mais tempo de atividade no Paraná. Ano passado, comemorou 60 anos de profissão. Apenas em 2013 deixou de fazer partos normais, sua especialidade. A parede de sua sala no Edifício Asa é forrada de retratos de crianças que colocou no mundo.

Paralelo à medicina, Helen mantém a Fundação Sidónio Muralha, em homenagem a seu marido. O escritor lisboeta viveu em Curitiba cinco anos, entre os anos 1970 e 1980. Morreu em 1982. Sua obra para crianças figura entre as melhores produzidas na língua portuguesa.

  • A médica Helen Anne Butler Muralha no jardim da Fundação Sidónio Muralha, no bairro Rebouças, em Curitiba. Residência da Rua Desembargador Westphalen foi erguida nos anos 1910 e até o final da década de 1960 abrigou a pequena família Butler, originária da Letônia. Nos anos 1980, ao perder o espaço da Biblioteca Sidónio Muralha, na Rua Augusto Stellfeld, Helen levou o acervo para esse local
  • Helen Butler com o abacateiro batizado como
  • Helen Butler no grande jardim da Fundação Sidónio Muralha. Local é multiuso. A cada 15 dias serve de espaço para os ensaios da Camerata Ars Nova, da qual a médica é regente. A pequena comunidade leta da cidade e região também se reúne ali. Nas paredes, fotos e a arte do poeta Sidónio Muralha, ele mesmo um artista versátil. Sua editora, a Giroflé, marcou época e inovou com os livros finos e compridos, à época incompreendidos pelo mercado
  • Além de resguardar a memória de Sidónio Muralha, Helen Butler guarda recortes, manuscritos e apetrechos que seu pai, o professor de inglês e pastor batista, Guilherme Butler, trouxe das viagens que fazia, nas primeiras décadas do século 20, aos sertões do Brasil: mister Butler é digno de ser biografado
  • Helen e o jardim de rosas da Fundação Sidónio Muralha. Lisboeta de nascimento, Sidónio – às turras com o regime salazarista – passou parte da vida no chamado Congo Belga, independente a partir de 1960. Poderia ter vivido na Bélgica a partir daí, mas escolheu o Brasil, onde pretendia editar livros. Não obteve sorte, ainda que tenha marcado época. Uma das autoras de sua editora era a conterrânea Cecília Meirelles
  • Helen Butler na sala principal da Fundação Sidónio Muralha. Vida da médica se divide em três espaços – seu apartamento na Visconde do Rio Branco, onde guarda as memórias dos pais; o consultório no Edifício Asa, cujas paredes estão forradas de fotos das crianças cujos partos
  • Helen Butler se iniciou na música ainda na infância, por influência da mãe, Martha Butler. Passou pelo conservatório de Antônio Melillo. Avançou também pelo canto coral e poderia ter feito carreira como soprano. Mas a medicina – e as exigências da obstetrícia – se impuseram em sua vida. Não se arrepende da escolha, embora tenha consciência do seu talento artístico
  • De formação erudita, Helen Butler se diz eclética na prática musical. Ao todo, circula entre três pianos diferentes, sempre perto para que possa tocar. Nas horas vagas, a médica ainda é regente do coral mais antigo de Curitiba, o Camerata Ars Nova
  • Médica desde do sótão da Fundação Sidónio Muralha. Lugar onde dormia na infância e mocidade é hoje ateliê criativo para incentivar a leitura
  • Fotos de Helen Butler com Sidónio Muralha. Conheceram-se ao acaso, em 1970. A amizade de oito anos acabou em casamento, no ano de 1978. A união durou pouco – Muralha morreu cinco anos depois, em 1982, de complicações hepáticas
  • Um dos
  • O arquiteto Key Imaguire Júnior pensa em editar os poemas eróticos escritos por Sidónio Muralha. Produção poética
  • Helen Butler lê poema deixado por Sidónio em guardanapo de bar
  • Na porta da Fundação Sidónio Muralha há um poema do português:

"Ah, então a senhora é advogada da empresa de ônibus?", disparou o lisboeta irritado à passageira que tentava tranquilizá-lo sobre os serviços da Viação Penha. Ele, o "reclamante", era o poeta e escritor de obras infantojuvenis Sidónio Muralha. Ela, "a defensora", a médica e musicista curitibana Helen Anne Butler.

"Não sou advogada, sou médica", disparou. Ao que ouviu: "Entendi, a senhora dá atestado de óbitos". Ao que lhe devolveu, com a precisão de um anestesista: "Não, senhor, faço partos...

Helen dava à luz "bebés". Sidónio escrevia para crianças.

Naquela noite de 1970, na BR-116, discordaram sobre a qualidade do transporte interestadual, mas entenderam que tinham algo em comum, de uma vez para sempre.

SLIDESHOW: Confira ensaio fotográfico de Alexandre Mazzo

VÍDEO: Veja vídeo sobre as poesias de Sidónio para Helen Muralha

Helen Anne Butler é alta, esguia, dona de grandes olhos azuis, destacados pelos cabelos presos em coque. Sua voz pausada, com todas as letras bem marcadas, soa como uma canção. Faz jus à soprano que poderia ter feito carreira nos palcos. "Eu tinha condições para tanto", reconhece. Mas a Medicina venceu. Ela se formou em 1954, pela UFPR, uma das 13 mulheres em meio a 120 homens. Em pouco tempo estava entregue à obstetrícia.

O que mais lhe perguntam é quantos partos fez em 60 anos de ofício. Como não sabe, brinca de devolver o cálculo. Informa apenas que chegou a pilotar entre 20 e 30 nascimentos num mês. Por baixo, foram 240 por ano – algo como 14,4 mil bebês até aqui. "Ela pariu metade de Curitiba", superfatura o arquiteto Key Imaguire Júnior, um dos muitos fãs confessos da médica.

Não raro, jovens namorados descobrem terem vindo ao mundo pelas mãos de Helen. Festejam a coincidência, ignorando sua altíssima probabilidade estatística. Há situações curiosas, como a das pessoas de cabeça branca que a cutucam quando a veem na rua: "A senhora fez o meu parto". Ela ri e solta a piada nem sempre compreendida: "Acho que não."

A doutora Helen completa 84 anos no próximo sábado – e ainda dá expediente em dois endereços: no consultório que mantém desde 1958, no Edifício Asa, Praça Osório; e na Fundação Sidónio Muralha, na Rua Desembargador Westphalen. Adora fazer os dois percursos a pé. É de sua natureza.

O viajante

O pai de Helen, Guilherme Butler, era um forte. Jovem, migrou da Letônia, no Leste Europeu, para o Brasil. Depois rumou para os Estados Unidos. Chegou a noivar por lá, mas seu espírito expedicionário – uma espécie de Coronel Fawcett – o atraía para a América do Sul. Nos anos 1910, voltou, para ser pastor batista em uma comunidade leta de Rio Novo, Santa Catarina. Ali conheceu Martha, com quem se casou, mudou para Curitiba e provou da fama. Mister Butler, como o chamavam, era morador da Rua Ratclif, 110 – hoje Westphalen – e lendário professor de inglês do Ginásio Paranaense, (Colégio Estadual do Paraná).

Merece uma biografia. Por suas origens, por suas aulas rigorosas, por suas viagens sertão adentro. Preparava-se meses para conquistar rincões da Amazônia, do Mato Grosso e de Goiás numa época em que essas aventuras significavam morte certa. Quando voltava, aclamado, relatava o saldo de sua aventura em páginas inteiras de jornais, debaixo de títulos sem floreios como "A minha viagem de férias à Amazônia", publicado em O Dia no ano de 1934. Está tudo em álbuns guardados por Helen, a única filha, que conserva também uma coleção de frascos com águas de rios nos quais Butler se banhou, como o Negro e o Tapajós.

Ao se aposentar do magistério, ganhou o título de paraninfo. Seu inflamado discurso "As características de uma pessoa educada" saiu na íntegra na edição da Gazeta do Povo de 14 de dezembro de 1950, prova de seu prestígio.

Mister Butler morreu em 1962, aos 82 anos, em decorrência de um bloqueio cardíaco total. Foi uma comoção pública, para orgulho de Helen, que se perguntava se, algum dia, alguém se referiria a ela de outra forma que não "a filha de mister Butler".

Aconteceu uma vez. Ela fazia residência em São Paulo. O pai apareceu para uma visita. Na volta, no ponto do ônibus, ouviu duas mulheres conversando sobre a excelente médica que tinham arranjado. Chamava-se Helen Butler.

Em tempo. Essa história de moça bem comportada poderia acabar aqui, ao som de "Carol of the Bells", de Mykola Leontovych, uma das peças que tocou para a reportagem em seu piano Blüthner. Mas a mulher dada à música, nascida num lar que funcionava nas peias da pontualidade – "vício que herdei" – experimentou pelo menos dois descompassos. A eles.

O amado

O primeiro foi a escolha de Helen pela obstetrícia – uma área à prova de horários. Na mocidade, via-se impedida de acompanhar em excursão os corais nos quais cantava: sabia que os bebês desobedecem ao chegar. Por tempos teve uma chácara, mas ficava logo ali, no Jardim Schaffer, para que pudesse chegar mais rápido que as contrações das pacientes. Lembra de ter ficado 12, 16, 24 horas ao lado de parturientes. De três noites sem dormir, em partos seguidos. "Tem de observar a rotatividade da cabeça do nenê...", comenta, com perícia, ao descrever o que pouca gente sabe fazer: o mundo da medicina se rendeu à lógica industrial das cesarianas.

Quanto ao segundo descompasso, atende pelo nome de Sidónio Muralha. A disciplinada Helen tinha quase 40 anos quando o conheceu. Não era o tipo de homem que vem para organizar. Para começar, tinha sido perseguido pela Pide – órgão de repressão do salazarismo. Na busca de se safar, mentiu para os capitalistas da multinacional Unilever que sabia falar francês. Foi sua estratégia para conseguir um emprego no Congo Belga, livrando-se dos espartilhos da ditadura.

Foi descoberto, recobrou o respeito e virou herói. Em 1960, Sidónio ajudou muitos belgas a fugirem do Congo quando a farra colonialista acabou. Arrumaram-lhe em prêmio, inclusive, um lugar na Bélgica, mas era homem dado a altas temperaturas. Queria o Rio de Janeiro, onde à frente da Editora Giroflé tentou fazer o que queria – escrever e publicar e inventar.

Como o Brasil não é para iniciantes – inclusive para os patrícios – o projeto não deu certo: Muralha perdeu perto de US$ 30 mil, dinheiro ganho como indenização por sua aventura na África. Economista com quatro filhos para criar, virava-se para sustentar aos seus ora na Unilever, ora dando consultoria financeira, ora o que pintasse. Talvez por isso estivesse nos cascos na noite em que conheceu Helen no ônibus.

Palitinhos

Sidónio e Helen foram amigos até que ela recebeu o ultimato do casamento, em 1978. Negociaram as condições. Ela abandonou a carreira de professora de Medicina na UFPR e PUCPR. Ele se mudou para Curitiba – o que não foi propriamente um bom negócio. Gostava dos céus altos da cidade, como dizia. Mas é curioso como um intelectual da estatura de Muralha, com mais de 20 livros publicados e o nome firmado no neorrealismo português, tenha passado de forma tão discreta pela capital. Era bem fácil achá-lo: batia ponto no Restaurante Enseada, no Rebouças, seu preferido.

Além de comer peixes, dedicava-se, ali, a uma tarefa que conquistaria qualquer mulher – incluindo a reservada Helen: escrevia poesias curtas nos palitos de madeira usados para mexer as caipirinhas. "Eu fui muito amada", resume ela. Somaram cinco anos de casados, tempo embalado pela literatura e pela fleuma política do marido. Em 1982, Sidónio partiu levado pela rapidez traiçoeira das doenças hepáticas. Tinha 62 anos. Assim ela resume o poeta: "Sabia ser engraçado, contava charadas e fazia mágicas com copos".

Depois dele, Helen voltou à vida comum. Passadas duas décadas de viuvez, aos 73 anos se casou de novo, com o calculista Themístocles Santos Júnior, morto em junho passado. Tinham a música e a religião em comum. "Virei Dona Flor e seus dois maridos", brinca.

Na casa onde um dia viveram Martha e Guilherme Butler, na Westphalen, funciona hoje a Fundação Sidónio Muralha, de incentivo à leitura. Na porta, um verso dele: "Esta casa não é uma casa nascida no Sul, ela é uma asa voando no azul". O local é Ponto de Cultura, do governo federal. No quintal dos fundos tem um abacateiro atingido por um raio. Não morreu. Helen batizou-a de "José Alencar" – não o escritor, mas o ex-vice-presidente, "que não morria nunca". A filha do pontual mister Butler se senta ali, vez em quando, para umas horinhas de descuido. É de direito. Seu nome é Helen Muralha, afinal.

Helen Muralha

A outra face de Helen Muralha

A médica que se recusa a deixar o ofício cresceu e viveu rodeada pelas letras. A outra face dessa mulher está na ponta dos dedos, nas teclas do piano. É essa sua paixão quando está longe do trabalho.

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