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Mangas arregaçadas

Hoje, o trabalho em defesa do Museu Paranaense é relembrado com afeto por Oldemar Blasi.

Ele relata as vezes em que precisou subir no telhado do casarão que servia de abrigo do acervo para evitar que as goteiras estragassem o material.

"Esta foi a fase mais difícil da história do museu. A instituição esteve perto de desaparecer", avalia. Quando o Museu Paranaense foi enfim foi transferido para o Paço Municipal, em 1975, o número de visitantes se tornou 15 vezes maior. Em 2008, poucos meses após sua tentativa de se aposentar do trabalho de campo, Igor Chmyz viu-se mais uma vez com o barro pelos joelhos. Chmyz coordenou a pesquisa que resultou na descoberta das calçadas do século 18 expostas na praça Tiradentes. "Foi o trabalho que me obrigou a permanecer em campo por mais tempo seguido", salienta.

Oldemar Blasi e Igor Chmyz - Os arqueólogos paranaenses traçaram dois caminhos distintos na produção científica do Paraná. Como diretor do Museu Paranaense, Blasi travou uma batalha de mais de uma década pela adoção de uma sede apropriada para instituição. Chmyz, coordenador do Centro de Estudo e Pesquisa em Arqueologia da UFPR, ajudou a formar várias gerações de estudantes. Outrora mestre e discípulo, protagonizaram uma das mais tradicionais relações de rivalidade amistosa dos meios acadêmicos do estado.

Numa manhã anônima de 1958, o adolescente Igor Chmyz faz pela terceira vez o caminho de ruas barulhentas que corta o Centro de Curitiba rumo ao Museu Para­­naense, então abrigado em um casarão do Batel. Carrega na mo­­chila cacos de telha e cerâmica que recolheu durante uma pescaria com o tio. Ao entrar no museu, vê uma dupla de homens sérios e concentrados que, com certeza, pensa, devem ser funcionários da instituição. É a eles que a descoberta deve ser revelada.

"Era um menino magrinho, e trazia um monte de caquinhos na mão", relembra o arqueólogo Oldemar Blasi, um dos homens sérios. Os pedaços de cerâmica, descobriram mais tarde, era material arqueológico pertencente à Ciudad Real del Guayrá, uma extinta vila espanhola fundada no século 16, quando o Paraná ainda estava à esquerda de Tordesilhas. Igor foi então indicado para ser estagiário do Museu Paranaense (MP) e estudante do Centro de Estudo e Pesquisa em Arqueologia (Cepa) da Universidade Federal do Paraná. Para isso, contou com a indicação de Blasi e a mediação de José Loureiro Fernandes, fundador do Cepa e onipresente da arqueologia na época.

No Museu Paranaense, o agora estudante de Arqueologia Igor Chmyz ganhava experiência limpando e catalogando o material recolhido durante as pesquisas de campo. Tanto no museu quanto na universidade mantinha contato estreito com Oldemar Blasi, que dividia seu tempo como pesquisador do MP e secretário executivo do Cepa. "Aprendi com Blasi o Bê-a-bá da Arqueologia", revela Chmyz.

No ano seguinte, mestre e discípulo saíram a campo para pesquisar os sítios de Vila Rica del Espíritu Santu, no município de Fênix, outra cidade espanhola paranaense. Era a primeira e última grande incursão que os dois fariam juntos.

Vocação

Conversar com Blasi ou Chmyz é conversar sobre arqueologia. Os fãs do determinismo histórico podem levantar meios-sorrisos ao ouvir os dois cientistas – hoje com 90 e 70 anos, respectivamente – discorrer sobre os fenômenos naturais que os colocaram neste rumo.

Chmyz acredita que o gene da pesquisa científica sempre esteve presente em seu organismo. O sonho do pai, de ver seu filho formado médico, escapou pelas mãos curiosas do menino. Natural de União da Vitória, chegou a prestar vestibular para Medicina, mas abandonou. Permaneceu, porém, a inclinação para a pesquisa. Quando criança, costumava coletar diferentes espécies de plantas, ossos de animais e tipos de rochas e desenhá-las em seu caderno.

A catalogação embrionária feita em seus cadernos de infância, no entanto, carece hoje de profunda atualização. Em mais de 50 anos de escavações, Chmyz recolheu muito mais do que catalogou. Suas descobertas estão ensacadas na sede do Cepa à espera dos registros. "Acredito que deva levar mais 20 anos para terminar este trabalho", estipula. Após permanecer como diretor do Cepa de 1966 a 2007, se tornou-se professor-sênior da UFPR. Por conta do trabalho de catalogação e redação das pesquisas, bate ponto no Cepa em horário comercial estendido, além de ministrar disciplinas ocasionais nos cursos e pós-graduações da universidade. "Sinto falta do trabalho de campo. O arqueólogo é como um garimpeiro. Sempre tem esperança de que no dia seguinte irá encontrar os minerais mais preciosos de sua busca", compara.

O mesmo gosto pela aventura foi despertado na infância de Blasi, mas por via indireta. Durante as festas juninas de 1928, Oldemar teve o peito e a parte inferior do rosto queimados enquanto tentava preparar um balão junto com os irmãos. Após dois meses em coma, o menino de 8 anos foi trazido para casa e ficou impedido de sair às ruas. Sua mãe temia que as gozações das outras crianças provocasse em Oldemar uma dor ainda mais intensa que a do fogo. Durante os cinco anos em que permaneceu recolhido, usou a literatura de Julio Verne e Edgar Wallace para sair da casa na Rua Visconde do Rio Branco e viajar aos cantos mais secretos do planeta Terra, enfrentando perigos, aventuras e mistérios.

De volta à Curitiba real, terminou o ensino básico e se formou em Geografia e História pela UFPR em 1947. As inclinações para a arqueologia foram percebidas por Loureiro Fernandes, que o introduziu no círculo científico. Após um ano de pesquisa nos Estados Unidos, voltou ao Brasil em 1957 para ser o primeiro diretor do Cepa, cargo que ocupou até 1959.

Porém a contribuição mais significativa de Blasi às ciências naturais se deu no intramuros da política. Como diretor do Museu Paranaense, cargo que ocupou de 1967 a 1986, lutou pela destinação de um espaço adequado ao MP e pela conservação do patrimônio arqueológico do estado. "Lembro de uma ligação de um secretário de Educação que reclamava de eu estar pressionando pela conservação dos sambaquis de Guaratuba. Ele gritava: o senhor está prejudicando o prefeito por causa desse monte de conchas", relembra.

Choque e afastamento

A cisão entre Blasi e Chmyz é formada por um emaranhado de pequenos atritos que se estende ao longo de meio século. Desde a metade dos anos 1960, os arqueólogos seguiram carreiras independentes – Chmyz no Cepa; Blasi no Museu Paranaense – com raros pontos de convergência. "Em todo lugar em que existam dois grupos distintos haverá rivalidade", resigna-se Chmyz, que veio a se tornar sucessor de Blasi como diretor do Cepa.

Blasi credita seu afastamento definitivo da instituição ligada à UFPR a uma caça às bruxas comunista que teria começado a ocorrer no início dos anos 1960. O pai de Blasi havia sido membro da Ação Libertadora Nacional, e o próprio Oldemar admite simpatia pelo comunismo. "Mas meu interesse mesmo era pela ciência. Porém achavam que minhas ideias eram muito avançadas", acredita.

Chmyz, porém, credita o afastamento de Blasi a discordâncias com Loureiro Fernandes. "O Loureiro não gostou da exposição que o Blasi montou no Museu de Paranaguá", afirma. Blasi reconhece ter tido desentendimentos com o mentor. "Eu divergia do Loureiro, enquanto o Igor era uma espécie de subserviente dele", diz. "Então foi um para cada lado".

Em 2007, durante as comemorações do cinquentenário do Cepa, Blasi foi agraciado com o título de professor Honoris Causa. Em seu discurso, Chmyz disse que lamentava que os dois não tivessem trabalhado mais vezes juntos. Neste momento, Blasi abaixou a cabeça e apertou ainda mais os olhinhos miúdos. Supõe-se que tenha concordado.

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