Desde que começou o frio intenso, o Paraná já teve dois casos de morte por hipotermia (quando a temperatura do corpo fica abaixo de 35ºC). Uma foi em Curitiba, no Passeio Público (no início do mês), e outra na cidade de Apucarana. As duas mortes são apenas a prova de que ainda hoje existem pessoas que morrem de frio não há uma estatística no Brasil que dê conta dos números, até porque muitos moradores de rua são enterrados como indigentes (morte sem causa conhecida) e outros vão para o Instituto Médico-Legal (IML) e recebem como laudo da morte ataque cardíaco ou falência múltipla dos órgãos.
O morador de rua Abel Carneiro, 49 anos, que dormia no banco da Praça Osório na segunda-feira, era um forte candidato a morrer de frio. Apesar de não aceitar o atendimento do Resgate Social, quando a reportagem chegou perto, Abel reagiu: "Você não tem um cobertor para me dar?", perguntou tremendo. O resgate pediu para Abel sair do banco da praça porque ali ele estaria desprotegido da chuva e do frio. O problema é que Abel andou alguns metros e acabou deitando em um lugar mais gelado que o antigo: trocou o banco de madeira pela lajota de um comércio. "Eles pediram para eu sair de lá e vou dormir aqui", disse.
Abel contou que trabalha no cemitério e ganha bem, mas que tem muitas despesas. O álcool, certamente, consome o dinheiro e a própria vida dele. Assim como muitos moradores de rua, Abel tem família e não mantém contato por causa da vergonha. "Meus filhos me querem bem, mas sou burro", afirmou. Ele tem três filhos criados que moram no bairro Pinheirinho.
O jovem Márcio Ribeiro dos Santos, 20 anos, dormia sozinho embaixo de uma marquise na Avenida República Argentina, na madrugada da última segunda-feira. Ele também não quis ir para o albergue porque "os moradores de rua brigam muito lá". Ele não falava com clareza quando conversou com a reportagem, apenas comentou que vive na rua há oito anos porque não se acerta com a madrasta. Chegou à capital paranaense de ônibus, antes vivia em Quedas do Iguaçu.
Além do vício (álcool e as drogas), alguns moradores de rua estão nesta situação por causa do abandono familiar. João Freitas, 50 e poucos anos (segundo ele), foi encontrado embaixo da marquise das Livrarias Curitiba, na Boca Maldita loja que Freitas diz ser sua. "Sou dono deste comércio aqui, antes fui policial, fiz parte do Dops (Departamento de Ordem Política e Social, que existiu durante a ditadura) e agora estou aposentado", afirma. Nitidamente sofrendo de transtornos mentais, Freitas teria sido abandonado pela família, que, de acordo com ele, mora em alguma apartamento por aí. Ele mantém a boa aparência graças aos lojistas da Rua XV de Novembro, que pagam a ele para baixar as portas de ferro no final do dia. "Tomo banho lá na torneira da Osório", conta.
Paulo César Lopes Vieira, 40 anos, vive há 20 anos na rua. Para se proteger da maldade dos outros, dispõe da companhia do cão Barba, que não deixa ninguém chegar perto. "O maior medo de quem vive na rua é ser morto por alguém que joga álcool e taca fogo", disse.
Motivos
É consenso entre especialistas de que a escolha pela rua não ocorre de uma hora para outra por isso pode ser evitada e a pobreza é quase sempre o pano de fundo. Uma pesquisa nacional feita no ano passado apontou três motivos principais: uso de drogas ou álcool, desemprego e brigas familiares. A pesquisadora Maria Lúcia Lopes da Silva afirma que, mesmo em contextos de conflitos familiares, por exemplo, a desigualdade social é uma constante nas histórias e faz um alerta: "Se não mexermos nas estruturas da nossa sociedade, nunca conseguiremos acabar com o problema. Políticas públicas podem minimizar a situação, mas enquanto não houver equidade não haverá solução".
O senso comum diz que os moradores de rua estão nesta condição porque este seria um espaço de liberdade. Mas a realidade não é bem assim. "A rua é muito traumática. O sujeito vai perdendo a identidade e a autoestima. É violentado diariamente", afirma Anderon Costa, editor do jornal O Trecheiro e vice-presidente da revista Ocas, publicações voltadas para defender os direitos desse público. "Frequentemente os moradores de rua têm sua imagem associada ao crime. Eles têm de se adaptar a situações muito críticas e acabam pertencendo a lugar nenhum", afirma o sociólogo Dario Sousa e Silva Filho.



