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Curitiba ao relento

Endereço incerto

A reportagem da Gazeta do Povo foi às ruas para ver o que fazem os mendigos nas noites frias de Curitiba. Descobriu que muitos consideram a rua melhor do que o albergue

Paulo César Lopes Vieira e o cachorro Barba: morador de rua há 20 anos, ele prefere a calçada ao abrigo por causa do tráfico | Fotos Daniel Derevecki/Gazeta do Povo
Paulo César Lopes Vieira e o cachorro Barba: morador de rua há 20 anos, ele prefere a calçada ao abrigo por causa do tráfico (Foto: Fotos Daniel Derevecki/Gazeta do Povo)
1 - Abel Carneiro passava a noite no banco da Praça Osório |

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1 - Abel Carneiro passava a noite no banco da Praça Osório

2 - O Resgate Social chega, mas ele se recusa a ir ao abrigo |

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2 - O Resgate Social chega, mas ele se recusa a ir ao abrigo

3 - Como não pode ficar no banco da praça, passa a noite na lajota fria, em frente a uma loja |

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3 - Como não pode ficar no banco da praça, passa a noite na lajota fria, em frente a uma loja

Deitado em um banco da Praça Osório, em Curitiba, Abel Carneiro, 49 anos, está visivelmente alcoolizado e com frio. Os termômetros chegam próximo da casa do zero grau e o morador de rua – um dos 2,7 mil de Curitiba, segundo o governo federal, e 1,1 mil conforme a prefeitura (leia mais nesta página) – não para de tremer. O Resgate Social do município é acionado por volta das 2h30 horas da madrugada: a educadora chega, faz contato com Abel, mas ele se nega a ir para o albergue. "Não gosto de lá", afirma ele à reportagem depois que o resgate vai embora.

Abel não será o primeiro nem o último morador de rua que dará a mesma resposta aos educadores sociais que varam a noite na tentativa de retirar os mendigos da rua. A reportagem – sem ser identificada – chamou a equipe da Fundação de Ação Social (FAS) mais duas vezes na noite da última segunda-feira – quando começou a percorrer as ruas para mostrar como vivem os moradores de rua nas noites frias de Curitiba. Em todas elas notou que os moradores de rua preferem enfrentar o inverno a ter de ir para o albergue.

Os dados do monitoramento da própria FAS não deixam dúvidas: do total de abordagens feitas do início do ano até agora, 50% delas foram em vão, porque o morador de rua se negou a receber atendimento (veja tabela nesta página). É nas ruas da cidade que eles conquistam a liberdade, pois não têm horários a cumprir, podem fumar, beber e se drogar. Mas, ao contrário do que muita gente pensa, os motivos da preferência pela rua não são apenas os mais óbvios.

Grande parte destes moradores de rua são conhecidos pela equipe de resgate social, porque já passou pelo albergue pelo menos uma vez na vida. E é exatamente o fato de conhecer o abrigo que motiva os moradores a preferir dormir nas calçadas geladas de Curitiba. "Manda a Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] lá. Te garanto que eles fecham o albergue na hora. Prefiro dormir aqui [debaixo de uma janela do Shopping Estação] porque o ar é mais limpo", afirma Ismael, que preferiu ser identificado apenas pelo primeiro nome. Ismael conta que a última vez que passou pelo abrigo compartilhou o quarto com um outro morador que tinha tuberculose. "O cara tossiu a noite inteira, achei que ia ficar doente também", diz.

Além do possível contato com doenças contagiosas – o número de mendigos que dormem no mesmo quarto é grande, chegando a ter 20 beliches em um ambiente –, os moradores de rua dizem que o tráfico de drogas já chegou dentro do abrigo também. "Lá tem gente boa e ruim. O problema é que tem drogado e eu sou viciado apenas no álcool. Sabe como é, tem a pedra", diz Paulo Cesar Lopes Vieira, 40 anos, que mora há 20 anos na rua. Na segunda noite (última terça-feira) em que a reportagem foi às ruas para conversar com os moradores de rua – agora na companhia do Resgate Social –, uma indigente (o nome não será divulgado para que ela não seja vítima de retaliação) citou ao educador social uma lista de nomes de pessoas que estariam traficando dentro do albergue. "Não vou porque não preciso, não quero, lá tem tráfico", diz.

Só com máscara

Para apurar as denúncias feitas pelos moradores de rua, a reportagem tentou entrar no albergue ainda na última terça-feira, mas só teve autorização para a visita na quarta-feira à noite. A primeira coisa que chama a atenção ao chegar no abrigo é o cheiro forte que se espalha pelos corredores e se intensifica nos quartos. Uma educadora que cuida da ala feminina está de máscara, segundo a funcionária da FAS Maria Elizabeth Kopachinski Biela, justamente para aguentar o mau cheiro e para se prevenir de doenças infectocontagiosas. Ao perceberem a presença da reportagem, os próprios moradores começam a reclamar do mau cheiro e a dizer que os cobertores têm muquiranas (piolhos). O indigente Érico Adriano Coral, 40 anos, entra em um dos quartos da ala masculina, pega um cobertor e entrega para a reportagem. "Veja, está cheio de muquiranas. Quer que eu procure para você?", pergunta.

Não é de se estranhar que os cobertores tenham piolhos, afinal, os moradores de rua deveriam receber pijamas – logo depois do banho – para dormir. No dia da visita, contudo, muitos estavam deitados com a mesma roupa que chegaram da rua. Somente depois de a reportagem constatar isso, é que os outros moradores começaram a subir para os quartos com a sacolinha do pijama. "O que faz eles virem para cá é a sopa que recebem, este é o maior atrativo", comenta Maria Elizabeth.

Não há um controle rígido sobre a circulação dos moradores de rua pelos quartos – inclusive entre as alas feminina, masculina e de idosos –, o que poderia favorecer os mal-intencionados que pretendem vender drogas dentro do abrigo.

Visão simplista

O diretor de proteção social da FAS, Adriano Guzzoni, rebate as desculpas dadas pelos moradores de rua para não irem ao albergue. "Não concordo com estas afirmações, porque refletem uma visão simplista do problema. Fazemos um trabalho para que efetivamente estas pessoas possam receber atendimento. A questão é que eles não querem cumprir as regras de higienização e alimentação", explica.

Sobre o possível tráfico de drogas dentro do abrigo, Guzzoni afirma que o local é monitorado com a ajuda da Guarda Municipal. "Trabalhamos efetivamente para que isso não ocorra. Pode ser que uma vez ou outra isso possa acontecer. Há um grande número de pessoas em situação de rua que são dependentes químicos, não era de se estranhar que tivéssemos situações desta natureza", diz.

Já em relação aos possíveis contágios de doenças, Guzzoni explica que nem sempre os moradores de rua contam aos educadores sobre a existência de uma tuberculose, por exemplo. "Quando alguém declara ser portador de uma virose, é encaminhado imediatamente para uma unidade de saúde. Agora, se a pessoa não nos coloca isso, ela pode ir dormir sem passar pela equipe de saúde. Nossa maior preocupação é com o acolhimento destas pessoas", afirma. Guzzoni pede para que as pessoas lembrem que o problema do morador de rua é complexo e não é fácil de ser resolvido. "Envolve outras áreas de atenção que vão além da assistência social. A própria população acaba estimulando estas pessoas a permanecer na rua a partir do momento que lhes dão comida, agasalho e dinheiro", conclui.

Serviço:

O Resgate Social pode ser acionado pelo telefone 156.

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