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Violência

Histórias que a vovó não gosta de contar

Ana Márcia Noga, 40 anos, assistente social com seis meses na função, já sabe que cada viagem na Kombi do Resgate Social, da Fundação de Ação Social, corresponde a um soco na boca do estômago. Seu inventário de averiguações, por exemplo, já contabiliza pelo menos um episódio de violência sexual contra idosos. A situação em que tudo se deu é quase típica, tamanho o número de vezes que se repete: drogas em família, netos e filhos que se tornam algozes dos mais velhos. Parecia não passar disso. Mas, nesse dia, ser algoz queria dizer algo mais. Márcia faz uma pausa antes de lembrar da senhora – já morta – que foi violentada pelo parente e por um grupo de amigos que freqüentavam a casa.

Rosemery de Bárbara Correia, 36 anos, também assistente social e há um ano no Serviço de Atendimento ao Vitimizado (SAV), afina a opinião com as colegas: quando pensa que já viu de tudo, descobre que nem tem meio caminho andado. Costuma fazer atendimentos de até uma hora e meia. Os minutos correm e as verdades aparecem. "Dia desses, encontrei um idoso de 68 anos abandonado numa casa abarrotada de lixo. Havia um corredor para ele passar no meio daquilo tudo. Tem a cena, que a gente não esquece. Mas também o espanto de saber que a família morava ali perto e não fazia nada".

A rotina a que estão sujeitas Ana Márcia, Rosemery e as demais da equipe, como a psicóloga Rosângela Elisabeth Sickel, a gerente Jussara Carli e a apoiadora Judite Gonçalves, é de tal forma estressante que volta e meia são elas a precisar de apoio. Beth não esconde a carga pesada de todos os dias. "Tem horas em que me questiono: atendo tanta gente, mas sobra pouco tempo para minha mãe e para meu filho adolescente. Eles mesmos já chamaram minha atenção, pois eu vivia chegando em casa deprimida", conta, pondo à mostra uma espécie de história que não quer calar: agentes de saúde e de assistência, assim como cuidadores, tendem a se consumir em tarefas que exigem paciência, ouvidos atentos e nervos de aço.

Estatísticas

O trabalho de formiguinha da turma da Ação Social é um documento para o futuro. Ao final de cada averiguação, tudo é minimamente registrado – se a família interrompeu alguma medicação dada ao idoso, se houve humilhação pública ou privada, conflito familiar ou fuga, entre tantas outras possibilidades. Com esse material em mãos, confirma-se preto no branco as estatísticas e o senso comum. Há verdade na propalada longevidade das mulheres em relação aos homens. E, por extensão, na proporção de mais mulheres agredidas. Assim como não é boato de rua que o agressor habita entre quatro paredes: ele geralmente é da família. Por fim, a minguada aposentadoria dos vovôs e vovós é disputada muitas vezes no braço, servindo para abastecer a despensa ou pagar a conta no boteco da esquina.

Os levantamentos do Resgate Social apontam que as mulheres com mais de 60 anos estão mais sujeitas à agressão do que os homens na mesma faixa etária – até por serem em maior número. Revelam mais do que isso: a partir dos 70 anos e até os 89 elas mais e mais entram no campo minado da violência, no momento em que estão mais propensas às agruras da idade. Quanto ao agressor doméstico, dos 320 casos verificados dos últimos meses, 92 eram filhos, 23 netos e 38 terceiros – que podem ser agregados ou vizinhos, por exemplo. Por fim, a negligência familiar, já consagrada como a forma mais brasileira de descuido com a terceira idade, pipoca nos levantamentos, com 104 das denúncias – com a ressalva de que nem sempre se confirmam.

Um detalhe que chama atenção é a luta de classes. Embora as tabelas da Fundação não apontem, a agressão à terceira idade não escolhe nem ricos, nem médios, nem pobres. "Já entramos em muito condomínio de luxo", lembra Beth, que já ouviu um desaforado "Por que vocês não vão procurar problema lá na favela?". A resposta nem é assim tão difícil de dar.

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