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A percepção do jovem brasileiro sobre o que é violência doméstica e que comportamentos, em um relacionamento, são agressões à mulher ainda não é muito clara. Ao menos é o que revela uma pesquisa do Data Popular divulgada ontem durante o 2.º Fórum Fale Sem Medo, do Instituto Avon, cujo objetivo é combater a violência doméstica.

INFOGRÁFICO: Confira os principais resultados da pesquisa

Entre as mulheres que responderam o questionário pela internet, 8% admitiram espontaneamente ter sofrido violência de parceiro, enquanto apenas 4% dos homens disseram ter praticado algum tipo de violência em relacionamento afetivo. Quando as ações são detalhadas, porém, o número sobe para 66% entre as mulheres e 55% entre os homens.

Os dados mostram que o conceito de violência ainda está muito relacionado a agressão física. Para mais de 90% dos participantes, dar soco, tapa, chutar, ameaçar com arma, puxar cabelo, empurrar, arremessar objetos é violência. Entre 80% e 90% concordam que humilhar em público, obrigar a fazer sexo, quebrar objetos e ofender nas redes sociais também são atitudes violentas. Mas, para apenas 35% é violência proibir de sair à noite, controlar com ligações e impedir de usar determinada roupa.

"Esse é um assunto que deve ser trabalhado em escolas, porque violência não é só física. É o falar, reagir, agir, é psicológica, social. As pessoas dizem ‘nunca fui violento’. Aí, quando se expõe a situação, falam ‘isso eu já fiz, mas isso é violência?’", comenta o diretor executivo do Instituto Avon, Lírio Cipriani. Para ele, chama a atenção o fato de cada vez mais os jovens buscarem ajuda ao ver a mãe ser agredida, por exemplo, mas acabarem reproduzindo o comportamento violento em seus relacionamentos. "Fala-se muito em cybercontrole. A mesma internet que facilita os relacionamentos pode ser instrumento de controle do machismo sobre as mulheres, o que assusta um pouco."

Diretora de pesquisa do Data Popular, Maíra Saruê Machado ressalta que a violência doméstica ocorre em ciclos. "Acontece uma coisinha, pede desculpa, fala que não vai acontecer de novo. Em geral vai crescendo, com perigo até de a mulher ser assassinada." Segundo ela, a pesquisa também reforça que um dos pontos mais críticos é quando se decide terminar o relacionamento. A pesquisa revelou que 38% das entrevistadas disse que o ex-parceiro ficou mandando e-mail; 22% espalharam boatos; e 20% apareceram no trabalho ou na casa. "Isso é uma forma de coação, ficar tentando manter relacionamento."

Sem tirar o mérito das redes de apoio e da Lei Maria da Penha, Maíra defende que é preciso fazer um trabalho paralelo de educação nas escolas. Isso porque, para ela, a violência nasce na hierarquização do que é papel do homem e da mulher. "Será que a menina tem que brincar de casinha e o menino de lutinha? É preciso descontruir isso, pensar o ambiente em que essas crianças são criadas."

Cada participante preencheu um questionário, incentivado por um brinde, como uma carga de celular. "Como é um assunto delicado, é melhor não ter a interferência do entrevistador", explica Maíra.

Entrevista

"É uma ferida que não fecha, porque as consequências são para sempre"

Rose Leonel, 44 anos, jornalista

Vítima de cybervingança em 2006, em abril deste ano a jornalista de Maringá (no Noroeste do estado) Rose Leonel, 44 anos, criou a ONG Marias da Internet, para orientar mulheres que passam por situações semelhantes. Depois de terminar um relacionamento de quatro anos, ela teve vídeos e fotos íntimas divulgadas na rede pelo ex. "Ele começou a criar postagens, como se fossem capítulos de uma novela, e mandava para uma lista de 15 mil e-mails. Colocava todos os meus contatos, como se eu fosse uma garota de programa me vendendo na Internet." Depois de receber ligações de todo o tipo, ser demitida do jornal onde trabalhava e ter dificuldade de encontrar ajuda especializada, ela viu o ex ser condenado em 2010. "Temos que parar de punir a vítima." Confira a entrevista que ela concedeu à Gazeta do Povo, por telefone:

É difícil legislar nesse campo?

Tenho participado, junto com advogados, em eventos desse tipo, meu caso mesmo, estudei um pouco. O que senti na pele é que faltam leis específicas para esse tipo de crime no Brasil. Embora tenha a Lei Maria da Penha, existem lacunas graves, que são facilmente abordadas e os advogados conseguem fazer com que os infratores da Internet se safem de penas.

Como foi o seu caso?

Foi em 2006, meu caso é muito complicado. Eu tinha um companheiro, praticamente uma união estável de quase quatro anos. Quando resolvi romper o relacionamento, ele não aceitou, no final de 2005, me ameaçou, disse que ia destruir minha vida. No começo de 2006, ele começou a criar postagens, como se fossem capítulos de uma novela, e mandava por e-mail. Ele separou 15 mil e-mails, ia disparando isso a cada dez dias. Ele usou dois vídeos de um minuto, fotos, começou me denegrindo, me desnudando. Foi fazendo fotomontagem com meu rosto e umas séries de sites de pornografia. Foi criando histórias, colocava meu celular, o telefone da minha casa, o celular do meu filho, todos os meus contatos, como se eu fosse uma garota de programa me vendendo na internet. Ele escrevia coisas baixas, fazia críticas, colocava coisas ofensivas, de baixo nível. Eu recebi ligações de homens que queriam fazer programa comigo, várias ligações.

Como você descobriu?

Quando ele me ameaçou [no final de 2005], eu tinha senha do e-mail dele, todas as noites, eu olhava e peguei a negociação com um técnico de internet, dizendo que colocaria fotos minhas. O advogado me orientou a fazer notificação de que, se houvesse qualquer exposição minha, ele seria responsabilizado criminal e civelmente. Ele assinou e, em janeiro, começou a colocar as postagens. Quando ele assinou, me ligou e disse 'isso não vai me impedir, vou acabar com a sua vida, porque no Brasil não existe lei, não tenho medo da polícia, de Deus, de ninguém. A não ser que você venha ficar comigo'. Ele me chamava para ir lá, ficava muito nervoso, chorava no telefone, me xingava, gritava.

Você percebia comportamentos violentos nele, durante o relacionamento?

Ele era uma pessoa estranha, ciumento, meio persecutório. Algumas situações foram me deixando preocupada, mas eu jamais imaginei que passaria por uma situação dessa. Teve uma época do nosso namoro que ele chegou a grampear meu telefone. Eu terminei, mas acabei voltando.

E como você soube?

Passei o final de ano rezando. No começo de 2006, comecei a receber ligações. A primeira foi de uma amiga 'Rose, você precisa fazer alguma coisa. Tem umas fotos suas na rede, não sei se é montagem, que vão te destruir, estão te denegrindo'. Foi uma avalanche de telefonemas, meu telefone não parou mais. Desde homens querendo marcar encontro, amigos pedindo para eu ligar para a polícia, gente de outras cidades, tentando ser solidária, gente tirando sarro, todo tipo de ligação. Me ligaram pessoas até de Portugal, foi um inferno. Meu mundo desabou.

Você trabalhava em um jornal, como ficou sua vida?

Eu era colunista social do maior jornal da cidade, virou do avesso minha vida. Fui mandada embora.

Como foi esse processo de se refazer? Ele foi condenado?

Graças a Deus, ele foi condenado em 2010, o que me deu um alívio moral. Na verdade, nada paga. Ele terá que pagar uma indenização de R$ 30 mil, que estou recorrendo para aumentar, porque esse valor é o que eu tive de despesa. Não tem uma lei específica para isso, ele está pagando como uma calúnia e difamação corriqueira. Ele não chegou a ser preso, teve pena de 1 ano e 11 meses, que negociou em cestas básicas e trabalho social, porque tem lacunas na lei. Até agora não pagou um centavo, a lei é morosa.

Você sabe dele?

Por incrível que pareça, ele continua na cidade. É um empresário forte, tem dinheiro e as pessoas se curvam ao poder do dinheiro.

Quando você criou a ONG Marias da Internet?

Em abril do ano passado. Era uma ideia que tive durante minha luta, porque há oito anos os advogados não sabiam muito sobre o direito digital, não existe essa disciplina nas faculdades. Entrei em Pequenas Causas, perdi, precisei procurar ajuda em São Paulo, porque ninguém mais queria pegar minha causa. Você perde o chão e não tem quem te oriente. Pensei em montar uma entidade que dê uma luz para as vítimas. É muito triste sofrer um crime como esse e não ter um ponto de referência, alguém que possa te dar um telefone e te informar. Ano passado me juntei com profissionais que cuidaram da minha causa, eles abraçaram essa ideia e estamos trabalhando no projeto.

Desde abril, quantas mulheres você já atendeu?

Estamos em um momento de reorganização, porque o trabalho cresceu muito, precisamos fazer estatísticas. Atendo contatos pelo site, Facebook, mando pedidos de ajuda para os profissionais. Faço os primeiros socorros, como costumo dizer, daí mando para advogado, psicólogo e profissional de perícia digital.

Mas são casos frequentes? Todos os dias ou semanas?

Todas as semanas. Tem época que tem mais, outras menos. Tem época que são pessoas mais maduras, ou mais jovens, de 14, 15 anos. Já recebi pedidos desesperados de socorro, em que você vê que a pessoa está para tirar a vida. Já fiz atendimento por telefone. Estamos em fase de readequação. infelizmente, esse tipo de caso está crescendo. Recentemente, fizemos parceria com o Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico e vamos nos readequar para atender todo mundo. Recebemos pedidos de todos os estados.

Como se proteger desse tipo de crime?

Todo mundo tem Facebook, smartphone, o mundo está caminhando para isso. A maioria das pessoas está à mercê das redes sociais, essa tecnologia não vai regredir. Como isso já faz parte da vida das pessoas, eu digo que as mulheres – em especial as mulheres, porque é um crime de gênero – não deixem fotos [em que apareçam nuas] nas mãos do parceiro. Você nunca sabe quem é o seu inimigo. Às vezes, você pode estar dormindo com o inimigo. Falar para não tirar, é um caminho. Agora, tendo as fotos, não deixar nunca na mão do parceiro. Acho que temos que pensar juntos isso, é um caminho deixar sempre em posse da mulher, apesar de que hoje isso é um perigo grande, você deixa num aparelho com internet, entra um hacker e aquilo é roubado. Tenho muito medo.

Não fazer seria o melhor caminho?

Pois é, nada do que está na internet pode ser apagado...

Você ainda encontra fotos suas?

Infelizmente, ainda existe. O que cai na rede fica para o resto da vida. O crime na Internet é hediondo, porque não é um crime contra a pessoa, é contra os pais, os filhos, os netos. Meu ex atingiu meus pais, a mim, meus filhos, netos, toda uma geração familiar. A geração toda é magoada, sofre, é apunhalada, tem a dor e tem que administrar as sequelas. É uma dor que nunca acaba, uma ferida que não fecha, porque as consequências são para sempre, você não consegue tirar tudo.

Como essas mulheres podem administrar essas sequelas, reconstruir a vida?

Precisamos fazer trabalho de conscientização com a sociedade, é algo que eu proponho fazer na ONG. Esse é um crime de gênero, e a nossa sociedade é machista. Temos que entender que esse é um tipo de crime que pode acontecer. Puxa vida, você esqueceu umas fotos, por um descuido, aconteceu. Às vezes, o namorado filmou sem a pessoa saber, pode acontecer com a mãe, a filha, a irmã. Às vezes a pessoa critica, julga, mas não sabe que, no seio familiar, isso pode acontecer. A sociedade julga as pessoas, pune a vítima, condena, e a punição é tão pesada, que marginaliza a vítima, criminaliza a vítima, ao invés de criminalizar o infrator. A sociedade precisa entender que, quando houver uma situação dessa, precisa dizer 'mais uma vitima, bola para frente'. Temos que parar de punir a vítima e tentar mostrar quem é o verdadeiro vilão da história, que é o criminoso. Havendo uma mudança coletiva, social, as meninas vão parar de se matar. Elas se matam porque não aguentam a punição social. Os pais da vítima são martirizados no trabalho, na igreja, na rua. A vítima, então, vai ser execrada, linchada. Ela não suporta esse sofrimento e acaba tirando a própria vida. A sociedade vilaniza a vítima e poupa o homem criminoso, olha que inversão de valores. Puxa, ela foi vítima, vamos encontrar e punir o infrator. A vítima já teve sua tristeza, sua vergonha, ela já teve sua punição amorosa. Acredito que é um trabalho social, coletivo, da comunidade. A vítima já se decepcionou com o parceiro, já sofreu a dor da traição e da exposição, não precisa sofrer a da condenação social.

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