O número de decisões judiciais favoráveis à plantação doméstica de maconha (cannabis sativa) tem crescido no Brasil, apesar dos riscos de dependência e intoxicação da planta consumida ou fumada. Influenciados pela campanha de desinformação de empresas interessadas na liberação da droga no Brasil, juízes têm liberado a prática sem considerar que é praticamente impossível extrair em casa o canabidiol e o THC (tetra-hidrocarbinol) – duas das mais de 1.700 substâncias químicas da cannabis – com a pureza e na quantidade segura para uso medicinal.
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“Liberar o plantio em um país que nem controla a venda de bebida alcoólica para menor de idade e nem consegue impedir a venda de vapers proibidos no país é algo temerário”, afirma o médico João Paulo Becker Lotufo, atual coordenador do projeto antitabágico no Hospital Universitário da Universidade de São Paulo (USP).
Quando a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) liberou a importação dos extratos de canabidiol e THC para a fabricação de produtos, em dezembro de 2019, ela definiu que esses compostos seriam marcados com “tarja preta”, pelo risco de dependência, aumento de tolerância (a necessidade de ingerir quantidades cada vez maiores para ter o mínimo efeito desejado) e intoxicação. Os 14 produtos a base de maconha aprovados pela agência (não são considerados medicamentos por falta de evidência científicas consolidadas de eficácia) precisam ser prescritos com receita amarela (índice de THC menor de 0,2%) ou azul (índice de THC maior de 0,2%, maior risco).
Mesmo com os cuidados tomados pela Anvisa, a aprovação da plantação de maconha doméstica nos tribunais tem contribuído para a circulação de extratos clandestinos de canabidiol caseiro que não funcionam e podem oferecer efeitos colaterais e nocivos para quem os consome. A decisão dos juízes também facilita que a plantação doméstica de cannabis seja desvirtuada do seu objetivo original, sendo utilizada para uso recreativo, consequentemente ocasionando dependência química.
O psiquiatra Thiago Barbosa, responsável pela ala de psiquiatria do Centro de Atenção Psicossocial em Pombal, na Paraíba, ratificou que decisões judiciais dessa natureza podem ser porta aberta para a dependência química, pois pessoas que não possuem indicação de tratamento terão mais acesso à cannabis, já que a plantação não estará sob jurisdição de um órgão regulador.
“Obviamente, a partir do momento em que a plantação doméstica da maconha é permitida, mesmo que para famílias que tenham parentes próximos com problemas de saúde e que necessitam desse tratamento, isso abrirá possibilidades para que outras pessoas do grupo familiar tenham acesso ao seu uso”, destacou.
Ativismo judicial
Para o procurador da República Lucas de Morais Gualtieri, a concessão de salvo-conduto para o plantio de maconha, a pretexto de assegurar tratamento para uma infinidade de doenças é preocupante tanto sob o aspecto jurídico, quanto sob aspectos de saúde pública.
“Sob o aspecto estritamente jurídico, há um completo desvirtuamento da importante ação de habeas corpus, que vem sendo banalizada e utilizada com finalidade diversa da prevista pela Constituição. Além disso, as próprias limitações processuais do habeas corpus impedem que haja a necessária produção de provas sobre a situação daqueles que pleiteiam a decisão judicial, o que seria necessário para uma decisão judicial minimamente segura. Na maioria das vezes, as ações não trazem informações adequadas sobre o real estado de saúde dos supostos pacientes; a real eficácia do uso de produto a base de maconha para a enfermidade que se pretende tratar; a qualidade do ‘medicamento’ produzido artesanalmente; e a qualidade da matéria prima utilizada na atividade artesanal”, declarou.
O procurador destacou que é preciso que pessoas que fabricam medicamentos tenham a devida formação. “Toda a análise técnica das substâncias da planta envolve avaliação de grupamentos químicos, potencial de abuso, ação farmacológica, risco de utilização, controle internacional, dentre outros parâmetros, os quais são ignorados por essas decisões judiciais, já que não se impõe qualquer tipo de controle sanitário”, afirma.
“É preciso deixar clara a compreensão segundo a qual o juiz, inclusive criminal, não possui competência para autorizar o plantio de cannabis ou a produção artesanal de qualquer outro medicamento, juízo este a cargo da autoridade administrativa, a exemplo da Anvisa. O Judiciário parece estar substituindo o órgão técnico e concedendo autorizações que, a pretexto de garantirem o direito à saúde, podem estar colocando em risco os próprios beneficiários e a população em geral.”
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