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Câmara argumentou que o rito de invocar a proteção de Deus reproduz texto citado no preâmbulo da Constituição
Câmara argumentou que o rito de invocar a proteção de Deus reproduz texto citado no preâmbulo da Constituição| Foto: Pixabay

O Tribunal de Justiça de São Paulo proibiu os vereadores da Câmara Municipal de Araçatuba de realizar a leitura da Bíblia no início das sessões e utilizar a frase “sob a proteção de Deus. A decisão atende um pedido do Ministério Público de São Paulo que questionou a constitucionalidade das declarações proferidas no início das sessões legislativas como “sob a proteção de Deus, iniciamos nossos trabalhos”.

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Pela resolução da Câmara Municipal de Araçatuba, além da expressão inicial, consta que o presidente da sessão irá designar um vereador, inscrito por ordem alfabética, para fazer a leitura de um texto da Bíblia pelo tempo de até três minutos no início dos trabalhos.

De acordo com o MP, o ato de ler uma passagem bíblica no legislativo “contraria frontalmente a Constituição do Estado de São Paulo e o princípio da laicidade do Estado Brasileiro”. O órgão ainda cita o que está previsto no art. 19 da Constituição Federal, onde é vedado “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência”.

“A expressão usada na Câmara Municipal de Araçatuba não deixa dúvidas de que se trata de uma obrigação que prestigia os brasileiros cuja fé reconhece a Bíblia Sagrada como documento fundamento e que enaltece as Igrejas fundadas no seu respeito. Sendo assim, o dispositivo normativo atacado retrata uma relação de associação, de pacto, de aliança com as igrejas e religiões pautadas pela Bíblia Sagrada, bem como com os brasileiros que professam tais crenças”, explica o MP.

O MP ainda assinala que não compete ao poder público “criar preferências por religiões ou igrejas, enaltecendo uma das tantas crenças existentes no país, se fazer qualquer menção a outros credos ou filosofias que podem ser igualmente importantes para outros munícipes”.

No pedido, o MP ainda relembrou um posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF) referente a ADPF 54, de 2012, onde o ministro Marco Aurélio destacou que “o Brasil é uma república laica, surgindo absolutamente neutro quanto às religiões”. A menção à laicidade foi usada pelo ministro, na época do julgamento, para questionar o posicionamento da igreja contra o aborto de anencefálos.

Ao julgar o pedido do MP, o relator do caso no TJSP, desembargador Vianna Cotrim, considerou inconstitucional a resolução da Câmara Municipal. De acordo com Contrim, a CF adota a “laicidade como princípio destinado a manter rigorosa separação e autonomia entre política e religião”. Portanto, ele ressalta que “a Câmara de Araçatuba não pode manifestar filiação a determinada religião, em detrimento das inúmeras outras existentes”.

A decisão pela inconstitucionalidade foi unânime no tribunal e foi proferida em maio deste ano, sendo já transitada em julgado. Como o julgamento tem efeito retroativo, não cabe mais recurso. Outras câmaras municipais como de Piracicaba, Araras, Itapecerica da Serra e Catanduva já receberam a mesma decisão da justiça paulista, conforme consta na petição.

Repercussão e confusão sobre a definição de laicidade

A decisão da justiça de São Paulo foi criticada por associações religiosas e por pastores. O pastor Marcelo Toschi, líder da igreja Amor e Cuidado, ressaltou em um vídeo nas redes sociais, que “é justamente por causa da laicidade que temos liberdade de expressão religiosa”. Ele ainda destacou que a Constituição do Brasil foi construída sob preceitos e valores bíblicos, e que “essa restrição ocorre em uma nação onde mais de 80% da população é cristã”.

Ao ser questionado sobre a proibição da leitura da Bíblia, por parte da justiça, o Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR) reforçou um parecer dado em uma decisão similar, na Câmara de Itapecerica da Serra. Segundo o IBDR, a decisão da justiça “desconsidera, por completo, a Laicidade Colaborativa, ou seja, que é permitida a colaboração em busca do bem comum dentro do que chamamos de Estado laico colaborativo”.

“Nossa Constituição protege a livre manifestação das crenças exatamente por reconhecer o alto valor do elemento transcendente e espiritual intrínseco ao ser humano e necessário a formação do indivíduo e da sociedade, razão pela qual, por exemplo, sua Constituição foi promulgada sob a proteção de Deus, o ensino religioso é de matrícula facultativa no ensino fundamental, inclusive podem ser confessional (ADI 4439)”, ressalta o IBDR.

No parecer, o IBDR ainda destacou a diferença entre laicidade e laicismo, com o intuito de mostrar que são palavras que não devem se confundidas. De acordo com o instituto, a “laicidade constitucional brasileira coloca o Estado não apenas na posição de observador da liberdade religiosa, mas como verdadeiro garantidor e colaborador das mais variadas expressões de fé”. Enquanto que o “laicismo estatal tem o objetivo explícito de retirar de qualquer espaço público a religiosidade”.

Câmara de Araçatuba tentou argumentar

Ao contestar a Ação Direta de Inconstitucionalidade, a Câmara de Araçatuba reforçou que um Estado Laico não significa um “Estado sem religião” e argumentou que o rito de invocar a proteção de Deus reproduz texto citado no preâmbulo da Constituição Federal.

Na contestação, a Câmara ainda ressaltou decisões judiciais que consideraram improcedentes o pedido de retirada de crucifixos em tribunais. "O próprio Conselho Nacional de Justiça compreendeu que a tradição da sociedade garante que haja a exposição permanente de símbolos representativos de ideias inseridas na cultura da população”, explicou o procurador legislativo na ação.

O procurador da Câmara ainda reforçou que o mesmo entendimento sobre os símbolos religiosos deve valer para a leitura de trecho bíblico no início da sessão. “Há pessoas que poderão ser tocadas naquele momento, para outras não fará a menor diferença a leitura, mas continuaremos vivendo sob o manto da liberdade religiosa, o que não podemos admitir é que as pessoas ouvintes sejam obrigadas a aceitar o conteúdo das palavras lidas! Aí invadiríamos sua esfera de liberdades!”, complementa.

Os argumentos apresentados pela Câmara Municipal foram derrubados pelo relator do caso. Com a declaração de inconstitucionalidade e após receber o acórdão, a Câmara de Araçatuba informou que deixará de usar a frase “sob proteção de Deus” e de fazer leitura bíblica no rito de abertura das sessões legislativas. A casa legislativa está em recesso parlamentar e retorna às reuniões ordinárias no dia 7 de agosto.

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