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Lei Maria da Penha: novas regras beneficiam vítimas, mas são frágeis contra falsas denúncias
Para juristas, mudanças na lei Maria da Penha, que dão maior peso à palavra da suposta vítima e facilitam medidas protetivas, tem lado positivo, mas geram riscos em casos de falsas denúncias| Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Nas últimas semanas passaram a vigorar novas regras relacionadas às medidas protetivas de urgência previstas na lei 1.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, que tem como objetivo coibir casos de violência doméstica.

A primeira mudança tem a ver com a sanção, pelo presidente Lula (PT), de um projeto de lei que prevê maior facilidade na concessão de medidas protetivas – como afastamento do lar, proibição de visita aos filhos e prestação de alimentos – em favor de mulheres que se apresentem como vítimas de violência doméstica. A partir de 20 de abril, data em que a lei foi sancionada, as medidas protetivas passaram a poder ser concedidas imediatamente mediante o simples depoimento da suposta vítima perante a autoridade policial ou a apresentação de suas alegações por escrito. Nenhuma comprovação da violência é exigida nesse momento.

Outro trecho acrescentado à lei diz que as medidas protetivas serão concedidas independentemente da tipificação penal da violência, do ajuizamento de ação penal ou cível, da existência de inquérito policial ou do registro de boletim de ocorrência. Na prática, sequer será preciso registrar um boletim de ocorrência em uma delegacia para que as medidas protetivas sejam estabelecidas contra o suposto agressor. O pedido pode ser negado, entretanto, caso a autoridade policial aponte inexistência de risco à integridade da mulher.

“O que vinha acontecendo? Muitas vezes, as medidas protetivas eram indeferidas ou demoravam a ser concedidas. E, agora, não vai haver um julgamento. Não há que ser questionado se houve violência ou não, não há que ser questionado sobre tipificação penal ou não, e isso é muito importante”, disse a deputada Delegada Ione (Avante-MG) após a aprovação do projeto de lei na Câmara dos Deputados, em março deste ano.

A nova lei determina, por fim, que as medidas protetivas de urgência deverão ser mantidas “enquanto persistir risco à integridade física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral da ofendida ou de seus dependentes”. Em outras palavras, mesmo que haja uma ação judicial que tenha absolvido o homem acusado de violência, as medidas podem seguir mantidas a pedido da mulher.

Para reforçar esse entendimento, dias após a sanção da lei, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou que mulheres que se apresentaram à Justiça como vítimas de violência doméstica e conquistaram medidas protetivas devem ser ouvidas antes que essas determinações sejam extintas para que o juiz avalie sua eventual continuidade. Até então não havia uma determinação clara sobre esse tema, e as medidas costumavam perder eficácia caso houvesse absolvição do acusado ou mesmo o cumprimento da pena.

Mudanças são positivas para cessar violência, mas trazem insegurança jurídica em casos de falsas denúncias

Na avaliação de juristas ouvidos pela Gazeta do Povo, as mudanças na legislação são benéficas para vítimas de violência doméstica, que passam a ter acesso a mecanismos mais ágeis para a concessão de medidas protetivas contra agressores, o que reduz riscos de consequências mais graves de violência. Por outro lado, a mudança, ao dar ainda mais poder à palavra da suposta vítima, traz insegurança jurídica para casos de denúncias falsas.

“Tem um lado positivo e outro negativo. O positivo é que se a mulher realmente estiver em situação de violência e risco, a medida é fantástica. Por outro lado, pode-se usá-la de maneira indevida contra ex-namorados ou ex-maridos em questões de vingança ou guarda de filhos, por exemplo”, explica Luciana Neves Vidal, professora de Direito Penal e doutoranda em Direito. “Nesse uso indevido, com denúncias falsas de violência, a pessoa que foi acusada vai enfrentar medidas precoces através apenas de uma cognição sumária, ou seja, onde não há espaço para o contraditório. Então é preciso debater até onde essa medida é segura”, destaca.

Para Daniel Crespo, advogado especialista em Direito Penal atuante em casos relacionados à Lei Maria da Penha, como as medidas protetivas ficavam atreladas ao desenrolar de um processo judicial, a pessoa apontada como agressora tinha a oportunidade de se defender produzindo provas em seu favor ou apresentando testemunhas, por exemplo. Na avaliação do jurista agora, com a palavra da vítima ganhando mais força por si só, haverá maior insegurança jurídica para os acusados de agressão.

Como não há necessidade sequer de registrar boletim de ocorrência para pedir as medidas protetivas, pode haver casos que não serão investigados pela polícia para apurar a veracidade das denúncias e ainda assim, sem ouvir a parte acusada, o juiz pode decretar as medidas. “Isso deixa a pessoa acusada em desvantagem, obrigada a mostrar que aquela acusação não é verdadeira. É quase que uma inversão do ônus da prova: a pessoa é culpada até que se prove o contrário”, afirma.

O especialista em Direito Penal explica que, apesar de o aspecto da cognição sumária – possibilidade de o juiz estabelecer a medida protetiva sem ouvir o suposto agressor – já ser uma realidade anterior à sanção da nova lei, o novo entendimento acaba reforçando o caráter unilateral no âmbito da Lei Maria da Penha. “Fica mais difícil para a pessoa se defender de uma acusação sem haver um processo, tendo que se manifestar somente nos autos de uma medida protetiva, em que o juiz não é obrigado a chamar testemunhas ou ouvir o acusado pessoalmente. No curso de um processo, sim, há uma série de mecanismos que permitem que seja feita a defesa”, aponta Crespo.

“A lei em si é bem-intencionada, mas acaba que sua aplicação às vezes fica comprometida por conta da má utilização por parte de algumas mulheres para ganhar vantagens, por exemplo, em separações e processos de guarda”, destaca o advogado.

Medidas protetivas vão de afastamento de casa até pagamento mensal e bloqueio de contas

Há uma série de medidas protetivas de urgência que podem ser impostas após ser feita uma denúncia de violência doméstica. Entre as mais comuns estão o afastamento do suposto agressor do lar ou local de convivência com a denunciante, a fixação de limite mínimo de distância que o acusado de agressão fica proibido de ultrapassar em relação à mulher e a suspensão da posse ou restrição do porte de armas, caso se aplique.

Outra medida que pode ser aplicada pelo juiz é a obrigação ao agressor de pagar pensão alimentícia provisional ou alimentos provisórios. Há, ainda, mais possibilidades previstas, como bloqueio de contas e/ou de bens e prestação de caução provisória mediante depósito judicial. De acordo com a lei, o juiz pode determinar uma ou mais medidas em cada caso.

“No caso do afastamento do lar, por exemplo, há casos em que o homem está voltando do trabalho, e um oficial de Justiça o aguarda informando que ele deve deixar a casa imediatamente. Num episódio real de violência isso é bastante positivo, mas com as novas regras o homem pode ser afastado só com a palavra da mulher, sem sequer haver investigação policial sobre a real ocorrência da agressão. A medida protetiva ficou praticamente autônoma”, diz Daniel Crespo.

Luciana Vidal, por outro lado, pondera que o delegado, ao receber uma denúncia, deverá avaliar se há ou não dados suficientes para prosseguir com o pedido da medida protetiva, o que pode impedir que pedidos de restrições de baixa confiança sigam ao Judiciário. “Sendo alvo dessas medidas, o denunciado pode questionar a determinação na Justiça. Se for determinado o pagamento de prestação de alimentos, por exemplo, ele deverá pagar ao menos temporariamente, mas poderá questionar durante o decorrer do processo criminal”, afirma.

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