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ONU estima haver mais de 300 milhões de usuários de drogas no mundo |
ONU estima haver mais de 300 milhões de usuários de drogas no mundo| Foto:

Tratamento Médico

Brasil não dá conta nem de tratar as lícitas

Profissionais que atuam no tratamento a dependentes químicos temem que, caso a hipótese da descrimininalização ganhe força, os investimentos em recuperação clínica não acompanhem a mudança radical. "O Brasil não dá conta nem de tratar as drogas lícitas, como o álcool, imagine o cenário em relação à droga permitida. Poderíamos pensar nesse caso [mudança na lei] somente após investimentos em educação e prevenção aos males causados pelos narcóticos", pondera o psicólogo Dionisio Banaszewski, membro do Conselho Estadual Antidrogas.

Flávio Roberto Almeida Lemos, diretor técnico da Casa de Recuperação Água da Vida (Cravi), tem posição semelhante. "O Brasil não tem estrutura política ou social para isso", avalia. "Hoje o enfrentamento do crack é feito com uma vaga de internação para cada mil viciados. Não temos política pública diante de algo que pode ser considerado uma epidemia", alerta.

A definição legal sobre as drogas, avaliam os especialistas, não vai impactar a forma como os pacientes serão tratados. "O desafio da recuperação está muito mais ligado ao grau de dependência e à condição psicossocioespiritual do indivíduo do que ao fato de a substância ser legal ou não", afirma o psicólogo Guilherme do Valle, especialista em dependência química.

Ele avalia ser importante a mudança no foco do debate. "Temos como posição consolidada que as drogas sempre existiram. A discussão deve se pautar pela forma com que as pessoas usam substâncias químicas na atualidade. A droga deixou de ser problema isolado, ou de uma família, ou mesmo de saúde. É uma questão cultural", diferencia.

Uma comissão internacional que reúne lideranças políticas e intelectuais de renome fez ontem uma contundente declaração sobre o combate às drogas: "A guerra contra os narcóticos fracassou, com consequências devastadoras para indivíduos e sociedades pelo mundo afora". A análise faz parte de um relatório da Comissão Global sobre Política de Drogas, da qual faz parte o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e diversos líderes mundiais, como o ex-secretário geral da ONU, Kofi Annan. A divulgação do relatório coincide com a estreia do documentário brasileiro Quebrando o tabu, que defende a descriminalização das drogas.

A entrada em campo de pesos-pesados da inteligência internacional reacende o debate sobre qual é a melhor maneira de os países lidarem com a questão das substâncias psicotrópicas. A ideia por trás da criação de uma comissão global é, justamente, incentivar a tomada de posturas transnacionais sobre o assunto. Como os narcóticos constituem um mercado bilionário e globalizado, com estimados 300 milhões de usuários e US$ 320 bilhões de receita anual, a adoção de novas políticas precisa ser sincronizada entre os países, defende o grupo.

A comissão global diferencia, em sua pauta, os conceitos de descriminalização e legalização. No primeiro caso, estariam liberados a posse de pequenas quantidades e o consumo de narcóticos. No segundo, mais abrangente, toda a cadeia seria retirada da ilegalidade – da produção da matéria-prima até a venda e o uso.

Membro da Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia (CBDD), o coronel reformado da Polícia Militar do Rio de Janeiro Jorge da Silva avalia que a descriminalização possa ser um primeiro passo para que a sociedade encare o problema de forma mais franca e aberta. "Os jovens não vão ter que esconder de suas famílias [o vício] e não terão o estigma de criminosos ou párias da sociedade. Poderão falar com seus pais e mães, orientadores educacionais nas escolas, pastores, padres, médicos", afirma.

Experiência

A Holanda tem, possivelmente, a experiência de descriminalização mais conhecida no mundo. Drogas leves, como maconha e haxixe, são permitidas para uso pessoal. Os cidadãos holandeses podem comprar até 5 gramas do produto em coffee shops – locais autorizados para a venda que não podem ter estoques maior que 500 gramas. As drogas pesadas continuam proibidas, assim como a produção e o comércio de grandes quantidades de qualquer tipo de narcótico (leve ou pesado). Para Fernando Henrique Cardoso, a solução holandesa é "hipócrita", por permitir o uso ao mesmo tempo em que proíbe a produção.

O professor de Direito Penal da Universidade de São Paulo (USP) Pierpaolo Bottini se diz amplamente a favor da mudança. Ele entende que as drogas são uma questão médica, e não judicial. "As estruturas do crime – incluindo o tráfico de armas, violência e poder paralelo de Estado – são resultado da política proibicionista", defende.

Como contrapartida ao uso, Bittini sugere que o Estado passe a investir na política de redução de danos e internação voluntária de dependentes. "Esse paternalismo [criminalização do uso] não tem mais que existir em um Estado de Direito. A legislação penal é para agressões graves, em que o indivíduo não pode se defender. Um tratamento forçado não tem sucesso. O tabagismo, por exemplo, caiu brutalmente sem ninguém ser obrigado a nada", compara.

Análise viciada

O deputado federal Fernando Francischini (PSDB-PR), ex-delegado da Polícia Federal e autor da ação que suspendeu a Marcha da Maconha em Curitiba, acusa FHC de analisar o problema a partir de uma visão excessivamente acadêmica. "Ele não viveu o que eu vivi nas ruas, convivendo com pais e mães de dependentes químicos", diz. O deputado defende que o uso deve continuar sendo crime, sem pena de prisão, mas com obrigatoriedades como o comparecimento a casas de recuperação e reabilitação. "O dependente, principalmente de rua, passa a ser um incapaz. Nos casos de crack e cocaína, o tratamento tem que ser obrigatório".

Francischini afirma não ver a possibilidade de ocorrer um acordo global para a legalização das drogas. E teme que, caso a maconha seja descriminalizada no Brasil, o país passe a ser destino do tráfico internacional, já que cerca de 70% da maconha consumida no Brasil é importada e o país não é produtor de coca.

O promotor de justiça do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais do Júri e de Execuções Penais do Ministério Público do Paraná, Paulo Lima, entende que a amenização da repressão penal aos consumidores já aconteceu com a atual lei antidrogas. Ele acredita que a descriminalização total pode estimular o consumo. "O direito vem como o último bastião de defesa contra as drogas. Primeiro vamos ver o efeito de medidas adotadas na saúde pública, para depois pensarmos em mudanças na área penal", afirma.

João Kopytowski, desembargador do Tribunal de Justiça do Paraná, julgou por vários anos crimes de porte, posse e tráfico de drogas, principalmente nas fronteiras do país. É favorável a um aumento dos efetivos policiais e do aparato penitenciário para a repressão às drogas, aliado a medidas educativas. Mas a descriminalização, para ele, está fora de questão. "Nosso nível cultural não permite um esclarecimento tão moderno, tão grande assim", diz.

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