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Rodrigo Xavier Leonardo, Paula Schmitt, Ana Luiza Rodrigues, Nadine Strossen e Fernando Schüler debatem se cabe ao Judiciário e ao Estado dizer o que é verdade e mentira no congresso “Liberdade de Expressão: o debate essencial”, em Brasília
Rodrigo Xavier Leonardo, Paula Schmitt, Ana Luiza Rodrigues, Nadine Strossen e Fernando Schüler debatem se cabe ao Judiciário e ao Estado dizer o que é verdade e mentira no congresso “Liberdade de Expressão: o debate essencial”, em Brasília| Foto: Paulo Ivan Dybas/Divulgação

Quando é dado à Justiça Eleitoral o papel de julgar a licitude de discursos no período de campanha, seria necessário distinguir narração de fatos da emissão de opiniões? Pode ser considerado desinformação, descontextualização ou “fake news” a previsão, e a crítica implícita a isso, do que um candidato fará ou deixará de fazer quando eleito?

É razoável que, quando essas projeções se baseiam em fatos duvidosos, a Justiça Eleitoral proíba que isso seja divulgado e retire do ar tais manifestações? E como fica a liberdade de expressão num dos momentos em que ela é mais importante, para escolha de representantes e governantes numa democracia?

Esse foi o tema do segundo painel do congresso “Liberdade de Expressão: o debate essencial”, realizado em Brasília nos dias 27 e 28 de setembro. O evento foi organizado pela Gazeta do Povo e pelo Ranking dos Políticos com o apoio do Instituto Liberal, do Instituto dos Advogados do Paraná e da Federação Nacional dos Institutos dos Advogados (Fenia). Vozes influentes no tema da liberdade de expressão do Brasil e do mundo participaram de seis painéis sobre o assunto.

Na discussão sobre os limites da crítica, participaram o filósofo e cientista político Fernando Schüler; a professora e escritora americana Nadine Strossen, ex-presidente da American Civil Liberties Union (ACLU); a jornalista e colunista do site Poder360 Paula Schmitt; e o advogado Rodrigo Xavier Leonardo, especialista e atuante no campo da liberdade de imprensa. A mediação foi de Ana Luiza Rodrigues, diretora executiva do Instituto Ives Gandra, mestre e doutora em Filosofia do Direito pela USP.

Para ilustrar o debate, foram apresentadas três propagandas eleitorais vetadas, no ano passado, pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Na primeira, a campanha do ex-presidente Jair Bolsonaro afirmava que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva queria “mudar a lei para incentivar o aborto”. Para isso, usou trechos de declarações que ele deu em abril de 2022: “eu não quero ter um filho, eu vou cuidar de não ter meu filho, vou discutir com meu parceiro, eu não quero. O que não dá é a lei exigir que ela tenha. Essa lei não exige cuidar”; “todo mundo ter direito e não ter vergonha”. O TSE retirou a propaganda do ar por considerar que a legalização do aborto não estava no programa de governo do atual presidente.

Da mesma forma, o tribunal vetou uma propaganda de Lula que afirmava que o governo Bolsonaro teria anunciado “o fim dos reajustes pela inflação do salário-mínimo e das aposentadorias” e que “o próximo alvo é acabar com o décimo terceiro e as férias”. A peça baseava-se numa reportagem, publicada à época pelo jornal “Folha de S.Paulo”, sobre um estudo do então ministro da Economia, Paulo Guedes, para desvincular o reajuste do salário-mínimo e de aposentadorias do índice de inflação do ano anterior.

O terceiro caso analisado envolvia um vídeo espalhado nas redes sociais em que o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) associava uma eventual vitória de Lula ao crescimento do uso de drogas, aumento da violência, censura contra opositores, ampliação do aborto e fechamento de igrejas, entre outros problemas. O TSE considerou o discurso “manifestamente inverídico e odioso”, “produzido para ofender a honra e a imagem” de Lula e para “induzir o usuário da rede social a vincular o candidato como defensor político das práticas ilícitas e imorais”. Citou agências de checagem que apontavam excesso nas falas, concluindo que embutiam “informações sabidamente inverídicas” e “fatos descontextualizados”.

No painel, o advogado e professor Rodrigo Xavier Leonardo lembrou que, até pouco tempo atrás, a literatura especializada e a jurisprudência da Justiça Eleitoral contemplavam a diferenciação entre fato e opinião. Somente quando um candidato imputava a um rival um fato ofensivo e inverossímil, a Justiça concedia a ele o direito de resposta. No período mais recente, a Justiça Eleitoral passou a adotar uma postura mais drástica, de retirar aquele conteúdo do horário eleitoral no rádio e na TV ou das plataformas digitais.

“O pressuposto é que a disseminação de fake news nas redes sociais exigiriam uma resposta diferenciada por parte do Judiciário”, explicou. O problema é que, com a necessidade de decisões rápidas e em grande quantidade, perdeu-se a capacidade de diferenciar fato de opinião, e com isso a aplicação do regime jurídico mais apropriado para cada situação.

“Segundo o que foi consolidado na experiência brasileira, quando há narração de fatos, é possível fazer juízo de veracidade ou inverdade a respeito de fatos. Quando diz respeito a ideias, opiniões, críticas, seria mais delicado realizar juízo de verdade ou falsidade, porque não seriam proposições verdadeiras ou falsas, mas mais ou menos adequadas segundo uma visão de mundo. Ainda que fosse possível estabelecer juízo de verdade sobre uma opinião, isso não caberia ao Estado ou ao Judiciário. A opinião mais adequada ou veraz decorreria do debate.”

Com base nos próprios casos apresentados, o advogado demonstrou que uma coisa é dizer que uma candidata praticou um aborto ilícito, outra é que ela apoiaria políticas favoráveis à legalização do aborto. Da mesma forma, uma coisa é dizer que um candidato propôs a redução do salário-mínimo, que é diferente de afirmar que ele pretende estabelecer outra política pública sobre o assunto. Afirmar que um candidato é usuário de droga é diferente de dizer que ele é favorável à legalização do consumo.

Quando se misturam as duas coisas, para remover uma propaganda crítica, o debate sobre cada uma dessas políticas públicas é prejudicado. “Fatos e opiniões são modalidades diferentes, exigem regimes jurídicos diferentes, violam bens jurídicos diferentes. Quando se limita a possibilidade de expressar opiniões, limita-se a possibilidade de que a sociedade construa soluções”, completou Rodrigo Xavier.

Para Paula Schmitt, nenhuma das propagandas poderia ser censurada na campanha eleitoral, ainda que algumas das afirmações fossem exageradas. “Não acredito que uma previsão possa ser censurada. Por essência, ela pressupõe uma confabulação, uma especulação, que não tem obrigação nenhuma de se comprovar. É da essência da análise política”, afirmou a jornalista. Ao comentar especificamente a propaganda de Bolsonaro contra Lula, ela apontou uma extrapolação, na frase de que o petista iria “incentivar a mãe” a praticar o aborto.

“Entendo a emergência [da Justiça] em momento eleitoral, mas o problema é quando temos uma Justiça parcial – somos humanos e temos de admitir essa fraqueza. E quando instituições inteiras são parciais majoritariamente para um lado, a solução mais segura é que não haja censura nenhuma, porque um ponto vai ser combatido por outro”, afirmou, concordando que, no caso, o ideal seria a Justiça conceder um direito de resposta, e não retirar a propaganda do ar. Mas observou que talvez não fosse do interesse de Lula apresentar um contraponto, para esclarecer que ser favorável à legalização não é o mesmo que incentivar o aborto. O interesse pode ter sido eliminar de vez a discussão, dado o risco de perda de votos entre o eleitorado pró-vida. “A Justiça está sendo usada para impedir a verdade de vir à tona”, lamentou.

Nadine Strossen concordou que nenhuma das propagandas deveria ter sido retirada da campanha eleitoral. Nos Estados Unidos, relatou, qualquer manifestação pública só é censurada se representar um perigo iminente de dano. Em ações de difamação, quando a ofensa se dirige para uma autoridade pública, sua proteção é menor, uma vez que ela se colocou no debate público e deve estar sujeita à crítica. Restrições como as implementadas pelo TSE sobre a propaganda, concordou a americana, também acabam servindo para sufocar a busca da verdade sobre o que pensam e propõem os candidatos.

“Essa restrição é necessária para preservar a democracia? Não”, disse. “Experts dizem que muito mais eficaz que supressão é mais informação. O melhor a fazer nesses casos é prevenção da disseminação de inverdades, por meio da educação e pensamento crítico para avaliar o que é dito”, completou.

Fernando Schüler colocou-se contra qualquer possibilidade de o Estado definir o que é falso e o que é verdadeiro, seja em relação a fatos ou opiniões. “Toda a história da liberdade de expressão moderna foi construída sobre a ideia de que não cabe ao estado legislar sobre a verdade”, disse, no início de sua participação.

Citando James Madison (1751-1836), político e advogado americano que formulou a Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos, e que garante a liberdade de expressão e religião no país, Schüler disse que fatos e opiniões costumam aparecer misturados na opinião pública. Delegar a separação dessas modalidades a juízes, a fim de que sancionem o que é falso, é um risco, dado que eles podem errar.

Para o professor, é preciso saber conviver com as falsidades. “A permissão do erro e da mentira é o preço que temos que pagar por um princípio que nos faculta a verdade”, afirmou. “Boa parte do que foi feito no Brasil nos últimas anos foram supressões, censura prévia, em nome da ideia de combater as fake news, em nome da ideia de preservar a verdade fática. E o que a gente viu no Brasil é que nosso Judiciário tem muita dificuldade de fazer essa distinção entre fato e opinião”, disse, em outro momento do debate. Lembrando a lição do filósofo e economista John Stuart Mill (1806-1873), Schüler fez uma defesa do erro no debate público. “O erro pode se mostrar verdadeiro depois. Mesmo que não seja, ele tensiona a verdade. Obriga a verdade a sair de uma zona de conforto.”

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