• Carregando...
 | Ilustração: Felipe Lima
| Foto: Ilustração: Felipe Lima

Dei de lembrar da peça Novas diretrizes em tempo de paz, um marco desses anos 2000. O autor, Bosco Brasil, conta a tragédia de um judeu polonês que tenta se refugiar no país depois da Segunda Guerra. Barrado na imigração, o pobre coitado é torturado: só ganhará salvo-conduto se contar uma história que faça chorar o brutamontes que o atende – um funcionário da repressão no governo Vargas, mais dado a chibatadas que a misericórdias.

Pergunto-me por que diabos gastar saliva com essa fábula noir justo quando os fogos já saúdam 2013. E me respondo que deve ser culpa dos caprichos da literatura e seu estranho poder de dar sentido às coisas da vida. Explico. O escritor português Lobo Antunes diz que um bom personagem é aquele que fica olhando para a cara da gente depois que o livro acaba, negando-se ir embora. Não experimentamos nada parecido ao ler Cinquenta tons de cinza, por exemplo.

Segismundo e Clausewitz – as duas criaturas da obra de Bosco Brasil – são do tipo que sentam em nossa sala de visitas ficcional, em companhia de bambas como Emília, Capitu, Capitão Rodrigo, Ema Bovary, Ivan Illitch e tantos outros. O que digo aqui parece esquizofrenia aguda seguida de alucinações e babas, mas também pode ser chamado de imaginação literária.

Se me permitem, essa turma toda saída dos livros para morar na gente acorda de repente. Assim que pinta um perrengue, uma figura dessas sai de suas dependências secretas e vem participar conosco da realidade, ora para nos ajudar, ora para aporrinhar o juízo. Aconteceu algo assim há duas semanas, ao conhecer Luís Henrique Fagundes, 47 anos, 20 deles morando nas ruas.

Como tem know-how em questões de mendicância, pedi-lhe que me ajudasse a redigir um "guia básico da sarjeta", do café da manhã no meio-fio ao pernoite na marquise. Respondeu assobiando, fazendo graça da desgraça qual Ary Toledo na música-stand up Pau-de-arara. Lembram? É aquela composição sobre o ambulante que comia giletes para alegrar uma madame de Copacabana.

Luís deve pesar 50 quilos, tem a cara plissada de rugas e os cabelos castigados pelo sol. Fala bem e fala bonito. "Por que as ruas?" "Por causa da cachaça. A pinga é o combustível do mendigo", anarquiza. "O maior inimigo?" "Os playboys... eles atiram garrafas de mijo na gente...". "Miojo?" "Não...", corrige, explicando o ataque bélico passo a passo, do pipi no gargalo à busca por um alvo...

Qual um cientista, declarou o olfato como o mais importante dos sentidos para quem fareja comida no lixo. E a aguardente como a mais sublime enganadora dos sentidos. O álcool aumenta a tolerância a alimentos de procedência duvidosa nos labirintos estomacais. "Por isso que eu digo pra não mentir. Mentira é conversa que não faz curva. Nada do papo furado de pedir esmola para comprar leite. Tem de dizer que é pra pinga. O pessoal entende e colabora", ensina.

A propósito, garante nunca ter passado fome. Já se estranhou com a turma que distribui sobras na Casa di Frango, é verdade, mas se dá muito bem com o pessoal do Madalosso e dos restaurantes da BR-116 – a satisfação ou a marmita de volta. Pelo que conta de seu tour gastronômico, passa quase tão bem quanto o mendigo Bola, adotado pelo Olympe, restaurante do chefe de cozinha Claude Troisgros, no Rio de Janeiro.

Quanto aos melhores lugares para dormir, nem pestaneja: a Avenida Mariano Torres e a Praça Ouvidor Pardinho. Nos dois logradouros há tudo de que um morador de rua precisa – proteção. Na Torres são poucos pedestres e alguma penumbra, garantias de que não serão vistos pelos que praticam a sevícia medieval contra mendicantes. Na Ouvidor, há muitas travestis. Do alto do salto armam um solene forfait se alguém ousar atirar uma pedra no povo da calçada.

De resto, acrescenta Luís, bom mesmo é ser morador de rua em bairro, como a Fazendinha, seu preferido. "Mendigo do Centro é muito metido, tem nariz empinado. Mendigo de bairro é bem mais legal", avalia, imitando os ares aristocráticos da elite rueira que circula da Rua XV ao Terminal Guadalupe. Luta de classes no último degrau da pobreza. Rimos juntos da ironia. Só não teve muita graça quando Luís falou dos estranhos poderes de sua gente. "Somos invisíveis, sabia? É o que há de pior."

Acho que Clausewitz saiu da toca para ouvir essa conversa. Na peça de Bosco Brasil, ele precisou fazer das tripas coração para Segismundo chorar e não vê-lo apenas como mais um desesperado. Do contrário, voltaria para o inferno de onde veio. Luís não faz chorar. Faz rir. Não faz drama – diz que a rua tem boa cama e boa comida. Gostaria apenas de ser enxergado. Faço silêncio diante de seu pedido. Só posso lhe oferecer o consolo das ficções.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]