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O médico curitibano Ralf Kyrmse, 80 anos completados na última sexta-feira, gosta de contar que estudou com o escritor Dalton Trevisan num jardim de infância da Rua Aquidaban, hoje Emiliano Perneta. Ter um vampiro como companheiro de lancheira é mesmo coisa para não esquecer. O divertido é que, nesse caso, a lembrança merecia ser recíproca. Talvez Dalton não saiba, mas dividiu a gangorra com um personagem que parece saído das melhores páginas da literatura fantástica. Ralf é incrível – um mestre nos números, nas datas e em episódios que fariam Gabriel García Marquez pegar o primeiro avião e voar para Curitiba. Mas é bom avisar antes. Se chegar de sopetão, corre o risco de encontrar o otorrinolaringologista aposentado em plena expedição de ônibus pelos bairros da cidade.

Apesar da inteligência matemática, Ralf não é lá muito dado a seguir cronologias. Melhor explicar – ele embarca no assunto que surge no meio da conversa e ali mesmo recomeça uma nova viagem, sem escalas, fazendo a anterior parecer uma prosa amarela e sem graça. O colóquio pode ser sobre conchologia, um de seus hobbyes, com 680 peças, seguidas de uma narrativa homérica sobre seres hermafroditas, que vivem uma estranha forma de vida dentro das conchas. Em miúdos, dá vontade de sair correndo atrás de um curso por correspondência. Quando ele começa a falar de Algacir Darif – seu colega de ginásio com quem se reencontrou 58 anos depois – é fatal. Danem-se as conchas, que venham fotos e fatos sobre o dono do armazém maluco da Cândido Hartmann com a Jacarezinho, onde havia até um carrão 1947, com 25 mil milhas, empoeirado como se o mundo tivesse acabado e ninguém avisou.

Deve ser de família – Gert Hatschbach, também octogenário, também viajante, botânico dos mais festejados do mundo e presença silenciosa do Jardim Botânico, no Cajuru, bem, é primo de Ralf. Coincidência? Pode ser, mas soma mais um ponto na tese inicial, em especial ao se saber que o engenheiro químico Ronald Kyrmse, autor de Explicando Tolkien e o maior especialista brasileiro no autor de O Senhor dos Anéis, é filho de Ralf. Só resta dizer: "Que mais?" e apertar os cintos.

O assunto pode ser família. Kyrmse, no alemão arcaico, significa "quermesse". A árvore genealógica chegou em 1542. Num dos galhos está o dia em que alguns desses parentes decidiram recomeçar a vida em São Francisco, na Califórnia, e foram parar em São Francisco do Sul (SC), onde um deles até serviu de alfaiate para o príncipe de Joinville.

Não à toa, a história da ponte de Rio Branco no Acre que foi parar em Rio Branco do Sul, publicada na Gazeta do Povo do último domingo, foi cantada por Ralf. Quanto aos parentes em busca de São Francisco, sabe-se que um deles ganhou convite para viver na corte imperial. Nada feito. O estrangeiro hábil na agulha partiu, a pé, até Morretes e incluiu o sobrenome Hatschbach (do lado materno) na vida paranaense, para loucura de quem o procura na lista telefônica e não sabe direito como se escreve.

Para alguém, em especial, nomes complicados não eram problema. Alice Kyrmse, mãe de Ralf, sabia de cor nomes e sobrenomes. Mesmo aos 100 anos de idade, pontuação com a qual, no Natal de 2001, decidiu descansar. Antes de ir, passou para o filho uma listinha. Ali, escreveu quem eram as famílias da Comendador Araújo, entre a Praça Osório e Ângelo Sampaio, no período de 1910 a 1912. É uma jóia de família, assim como serão, um dia, os relatos de viagem de Ralf pela Curitiba vista da janela do ônibus.

Melhor relaxar. Alice, Ronald, Gert e o tataravô alfaiate do príncipe não são nada perto de Margot – de longe o capítulo mais tocante da saga de Ralf. Ele era estudante de Medicina, nos idos de 1944, quando desceu no sétimo andar do Edifícil Garcez, na Praça Osório, onde ficava o Centro Inter Americano. Foi onde viu uma jovem muito loira, de vestido de lã creme. Precisou de cinco minutos para lhe dizer: "Você é a mulher da minha vida. Vou passar o resto da minha vida ao seu lado." Negócio fechado. "Ela concordou. Deve ter sentido o mesmo", desmancha-se. Do impulso juvenil resultaram 52 anos de vida comum, uma casa projetada por ela na Rua Princesa Isabel, dois filhos, o livro quase secreto Minha Vida com Margot, lágrimas todas as noites desde que ela morreu, há três anos.

Todas as manhãs, enquanto faz a barba, ouve Gerswhin, Cole Porter, Billy Holiday, para não perder o ouvido, já que tocava clarinete, é amante do jazz e, a essa altura, o papo é sobre música. Enquanto isso, do lado de fora, as linhas Savóia, Bigorrilho, Campina do Siqueira e Jardim Esplanada passam. Boa pedida.

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