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Rua XV: 37 anos

Onde as Curitibas se encontram

Na segunda de quatro matérias, o escritório a céu aberto da XV de Novembro e as mudanças após a construção do calçadão

A Rua XV é um espaço da diversidade, onde as diferentes castas sociais se encontram na luta pela sobrevivência | Rodolfo Bührer/Gazeta do Povo
A Rua XV é um espaço da diversidade, onde as diferentes castas sociais se encontram na luta pela sobrevivência (Foto: Rodolfo Bührer/Gazeta do Povo)
Em quantidade de lojas, a Rua XV supera a maior parte dos shoppings de Curitiba |

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Em quantidade de lojas, a Rua XV supera a maior parte dos shoppings de Curitiba

Seu Manolo: pedestrianização mudou logística da Confeitaria das Famílias |

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Seu Manolo: pedestrianização mudou logística da Confeitaria das Famílias

Bar Mignon teve movimento espetacular nos seis primeiros anos de calçadão |

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Bar Mignon teve movimento espetacular nos seis primeiros anos de calçadão

Controverso na origem, diverso na essência. Não há em Curitiba espaço mais democrático do que o calçadão da Rua XV de Novembro, lugar onde a alma do curitibano – e a dos estrangeiros recém-chegados – aflora em estado bruto ou lapidado. Um lugar de toda a gente, do executivo ao mendigo, do engraxate ao artista de rua, do vendedor de loterias ao distribuidor de panfletos pornôs. Essa gama de personagens transforma a via no mais legítimo espaço da diversidade. Onde mais, senão na Rua XV, figuras de diferentes estratos sociais se esbarram na batalha cotidiana? É nela, portanto, que as muitas Curitibas se encontram.

Dos nove andares da Associação Comercial do Paraná (ACP), que reúnem alguns dos maiores PIBs da capital, à informalidade dos artistas e vendedores nos seus 808 metros lineares de petit-pavé, a Rua XV é um grande escritório a céu aberto, motor da economia curitibana e um dos retratos da informalidade no Brasil. O índice de empregados sem carteira de trabalho no país saltou de 8,1% em janeiro de 1991 para 28,1% em janeiro de 2001. No mesmo período, a proporção de empregados com carteira assinada caiu 12,8%.

Relatório deste ano da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, que agrupa os 30 países mais industrializados, indica que o mercado informal pode atingir dois terços da força de trabalho mundial até 2020. Portanto, a Rua XV está na moda, adiantada no tempo. Parado em frente do Palácio Avenida, Otacílio Oliveira integra o time dos "sem carteira de trabalho", passa os dias aguardando os transeuntes – turistas, em especial – se interessarem por suas telas. "Eles procuram imagens que lembrem a viagem, como araucárias e pinhas", diz. "Mas deve se pintar um pouco de tudo, porque não são apenas os turistas que compram".

Esses profissionais vivem a constante insegurança de desconhecer os rendimentos ao fim do mês. Mas, em geral, ganham mais do que o salário mínimo, hoje em R$ 465. "Houve dias em que vendi R$ 2 mil, como também acontece de não vender nada. A dificuldade está na concorrência", diz apontando outros três vendedores de telas na Avenida Luiz Xavier, a menor avenida do mundo e o ponto de partida do calçadão. Quem não tem o talento de Oliveira tenta sobreviver de outras maneiras.

Há quem se dedica aos instrumentos musicais em troca da moeda escondida na carteira do passante, crianças que vendem adesivos e aqueles que vivem da mendicância. Um gaiteiro, situado na Praça Osório, resume seu drama num cartaz: "Eu preciso de ajuda de vocês, pois eu sou cego. Trabalho com sol e nebrina (sic) porque preciso, e não por bonito. Estou pedindo uma ajuda para arrumar minha gaita que está estragada. Não estou mais podendo trabalhar com ela e que Deus abençoe a todos vocês".

Benefícios

O calçadão fortaleceu a imagem e a autoestima curitibana, criando além de um marco urbanístico e turístico uma passarela de vitrines que transformou a Rua XV de Novembro no ponto ideal para os desejos de consumo. Construído em 1972, o calçadão se tornou a sala de estar da cidade, o primeiro shopping de Curitiba. Passado o temor inicial, as vendas cresceram, sobretudo nos seis primeiros anos da novidade. Hoje, os benefícios da pedestrianização estão claros, mas na época o medo da mudança consumia os comerciantes, resultando em um abaixo-assinado e a ameaça de embargo da obra na Justiça.

Nem todos os lojistas eram contra a metamorfose da Rua XV. Um dos favoráveis era Jesus Alvarez Terzado, o já falecido proprietário da tradicional Confeitaria das Famílias. "O chefe (forma como se refere a Jesus) gostava da ideia de fechar a rua ‘quince’. Para os clientes, seria mais tranquilo", diz com o peculiar sotaque o espanhol Manoel Rodriguez Garcia, amigo de Jesus e funcionário da casa há 51 anos. A Confeitaria das Famílias foi obrigada a rever a logística de trabalho em função das mudanças.

"Não era possível trazer a mercadoria para a loja de ‘caminhón’. Tínhamos que carregar tudo com um carrinho adaptado. Perdi algumas noites de sono nesse serviço", lembra. No meio século de Brasil, Seu Manolo, como é chamado, vive para a Confeitaria das Famílias. Além de abrir e fechar o estabelecimento, mora no terceiro andar da casa que serve de sede. Os quadros em vermelho com imagens de touros rememoram a terra natal, assim como o sotaque, transformando palavras terminada em "ão" para "on", caso de "calçadon".

As mudanças não agradaram apenas a ele. Gerente do Bar Mignon, José Melquides Carvalho passou 39 de seus 60 anos acompanhando o movimento da Rua XV. Lembra com satisfação dos seis anos seguintes ao início do calçadão. "Tivemos movimento espetacular, chegando a vender dois mil sanduíches por dia até 1978", conta. A presença de teatros e cinemas nas proximidades colocava a sanduicheria numa encruzilhada de passantes. Atualmente, movimento semelhante se repete somente nas apresentações de Natal do Palácio Avenida. "Em geral, não ultrapasso os 500 sanduíches por dia", diz o gerente do bar, cuja marca é o excelente sanduíche de pernil temperado com cebolinhas verdes.

Leia no próximo domingo: a decadência da XV e a polêmica do peti-pavé.

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