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A parte mais grave da cartilha é a que afirma não existir limite de tempo para o aborto. Tecnicamente, causar a morte de um bebê em gestação depois de 22 semanas não pode ser mais considerado um aborto, porque a criança é viável fora do útero.
A parte mais grave da cartilha é a que afirma não existir limite de tempo para o aborto. Tecnicamente, causar a morte de um bebê em gestação depois de 22 semanas não pode ser mais considerado um aborto, porque a criança é viável fora do útero.| Foto: Reprodução/Live Action/YouTube

Um documento que distorce o que a legislação brasileira prevê sobre o aborto está sendo divulgado em Santa Catarina desde julho. Ao menos representantes de oito órgãos estaduais e federais de justiça, saúde e segurança foram responsáveis por elaborar a “Cartilha de atenção humanizada à interrupção legal da gravidez em Santa Catarina”, que segundo especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo, desobedece a legislação, livra o estuprador em caso de crime e trata bebês como “resíduo hospitalar”. O texto, em perguntas e respostas, foi editado pelo Ministério Público de Santa Catarina.

A cartilha foi produzida para ser distribuída em órgãos públicos para informar os funcionários e a população em geral sobre os supostos direitos ao abortamento em Santa Catarina.

Hoje, pelo Código Penal, o aborto é crime pela legislação brasileira, não punido em casos de estupro e de risco de vida da gestante. Em 2012, o STF definiu que o aborto de fetos anencefálicos também não deve ser punido.

Aborto de crianças viáveis fora do útero 

A parte mais grave da cartilha é a que afirma não existir limite de tempo para o aborto. Tecnicamente, causar a morte de um bebê em gestação depois de 22 semanas não pode ser mais considerado um aborto, porque a criança é viável fora do útero. O documento não explica por que o parto do bebê e sua entrega para adoção não poderiam ser uma alternativa.

“Depois da 22ª semana já não há mais o aborto, porque a criança tem uma chance muito grande de nascer viva”, afirma Lenise Garcia, presidente do Movimento Brasil Sem Aborto e doutora em Microbiologia e Imunologia. “Um aborto é a expulsão de um feto que não tenha viabilidade fora do útero. Eu faço a comparação com o aborto espontâneo, que é justamente de onde vem o termo aborto. Quando ela já tá com mais de 22 semanas, eu não tenho um aborto espontâneo, eu tenho um parto prematuro”, completa.

Ao tratar da destinação dos bebês abortados, com mais ou menos 500 gramas, antes ou depois de 22 semanas, a cartilha utiliza o eufemismo “Resíduos dos Serviços de Saúde na Interrupção Legal da Gestação”.

“A cartilha desconsidera qualquer direito do bebê em gestação, como se ele fosse um simples produto descartável, como se não tivesse nenhuma dignidade, não fosse um ser humano”, diz Lenise.

Cartilha relativiza dever de avisar a autoridade policial de um estupro 

Outro problema do documento é mencionar uma suposta incompatibilidade entre sigilo médico e notificação de crime à autoridade policial. Atualmente, a Lei 13.931/2019 obriga o aviso de ocorrência para as autoridades policiais em caso de violência contra a mulher e a produção de um Boletim de Ocorrência, o que pode ser feito sem violar a ética médica.

Mesmo assim, a cartilha afirma que a equipe médica pode se utilizar do sigilo médico para não denunciar casos de estupro identificados quando uma menina ou mulher é violentada e engravida. Além da orientação ser ilegal, isso torna praticamente impossível a prisão do autor do crime.

“Nesses casos, não se está discutindo de modo algum uma punição da gestante a em relação ao aborto, se esse entra dentro do art. 128 do Código Penal [que dispõe sobre casos de aborto onde não há pena], mas sim a punição ao estuprador. Então é um documento que livra a cara do estuprador, que é um absurdo”, pontua Lenise Garcia, presidente do Movimento Brasil Sem Aborto e doutora em Microbiologia e Imunologia.

Cartilha foi alvo de questionamentos na Assembleia Legislativa 

Logo após a divulgação da cartilha, a deputada estadual Ana Campagnolo (PL) enviou questionamentos a todos os órgãos que teriam participado da confecção do documento.

Em resposta, a SES (Secretaria de Estado da Saúde de Santa Catarina) afirmou que “deve observar as deliberações firmadas durante o processo de negociação e pactuação, uma vez que essas decisões são fruto de acordos e entendimentos alcançados entre as partes envolvidas. Portanto, é necessário que a SES cumpra o que foi pactuado para garantir harmonia nas relações entre os órgãos e entidades.”

No entanto, o delegado geral da Polícia Civil de Santa Catarina, Ulisses Gabriel, informou em resposta à parlamentar que solicitou a retirada da logo do órgão da “Cartilha”, pois não concorda com seu conteúdo, principalmente em relação à ação penal pública incondicionada.

Procurados, os outros órgãos envolvidos na produção do documento não responderam aos questionamentos da Gazeta do Povo. Se houver retorno, a matéria será atualizada.

Veja abaixo quais órgãos apoiaram a realização da cartilha: 

  1. Centro de Apoio Operacional da Saúde Pública do Ministério Público de Santa Catarina
  2. Conselho Estadual dos Direitos da Mulher de Santa Catarina
  3. Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres da Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina
  4. Hospital Universitário Professor Polydoro Ernani de São Thiago  
  5. Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão/SC - Ministério Público Federal 
  6. Núcleo de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar do Ministério Público de Santa Catarina  
  7. Polícia Científica de Santa Catarina Polícia Civil de Santa Catarina  
  8. Secretaria de Estado da Saúde de Santa Catarina  
  9. Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Tribunal de Justiça de Santa Catarina
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