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Confira a parte que gerou a polêmica |
Confira a parte que gerou a polêmica| Foto:

Excesso

Obra peca ao elogiar erro, diz gramático

Guardiã da norma culta da língua, a Academia Brasileira de Letras (ABL) expressou seu descontentamento com o teor do livro Por uma vida melhor. Em nota, informou estranhar certas posições teóricas de autores de livros com a chancela do MEC. Para a ABL, as feições sociais do idioma são objeto de estudo de disciplinas científicas, mas é diferente a tarefa do professor que espera encontrar no livro didático o respaldo dos usos da língua padrão – esta que os alunos deverão conhecer e praticar no exercício da efetiva ascensão social. Para o gramático Evanildo Bechara, membro da ABL, o livro não errou, mas se excedeu no elogio. "A função da escola zé melhorar o nível linguístico dos alunos. O capítulo do livro procurou mostrar a importância da língua escrita, apenas exagerou quando deu uma atenção maior à realidade que chama de língua popular. Diria que o livro está didaticamente inapto."

Variedade linguística

Bechara afirma que o professor pode aproveitar a língua do aluno para mostrar a variedade, mas não deve dizer que ele pode continuar falando daquela maneira. "A língua oral ainda não mereceu todos os estudos de que ela precisa para emitirmos opiniões a respeito disso. A própria língua escrita ainda tem coisas que precisam ser explicadas." Ele salienta ainda que, nos 60 anos de magistério, percebeu que o procedimento mais produtivo não é mostrar o erro para depois corrigi-lo, e sim, esperar que o aluno reproduza o erro e, a partir daí, o professor trabalhe a questão.

A divulgação de um capítulo do livro didático Por uma vida melhor provocou polêmica nesta semana ao considerar aceitável, em determinadas situações, o uso da linguagem oral em detrimento da norma culta. Escândalos gramaticais à parte, a indignação em torno da obra encomendada pelo Ministério da Educação (MEC) seria melhor aproveitada se fosse direcionada ao que realmente importa: a maioria dos estudantes sai da escola sem dominar a língua portuguesa culta. Para especialistas, conhecer as diferenças entre a norma gramatical e a usada coloquialmente, como a falta de concordância exemplificada no livro didático, está longe de ser um pecado no ensino. Pelo contrário. Esse conhecimento, quando bem empregado em aula, é ferramenta para reverter os resultados fracos obtidos pelos estudantes em diversas avaliações.O Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), que mede o desempenho escolar em âmbito mundial, mostra que o Brasil ocupa a 49.ª posição (de 65 países participantes) quando o assunto é proficiência da língua e leitura. Além disso, 15% dos jovens entre 15 e 24 anos são analfabetos funcionais, ou seja, sabem ler e escrever, mas são incapazes de interpretar. Já os alunos do ensino básico, na avaliação do Saeb/Prova Brasil, não conseguem alcançar a média 6. Diante desta realidade, os professores enfrentam um desafio diário para conseguir formar alunos que consigam transitar facilmente entre o que é coloquial e o que é culto.

"Ninguém usa a mesma língua o tempo todo. O padrão culto é referência fundamental para a escrita [e não é a mesma coisa que a fala]. Chamar a atenção para esta variedade é uma arma poderosa para o aluno compreender a função do que se chama padrão escrito. Isso melhora a competência do estudante", explica o escritor Cristovão Tezza, professor de linguística aposentado da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Tezza lembra que não há problema algum no fato de o professor brincar com a variação da língua com a revistinha do Chico Bento, por exemplo, até porque "a passagem para a escrita precisa da consciência desta diferença."

Não é possível aprender a norma culta "no vazio", sem que o aluno perceba as diferenças de oralidade e escrita, segundo o linguista Carlos Alberto Faraco, também aposentado da UFPR. "As pessoas deixam de perceber que antigamente [pelo menos até a Constituição de 1988], quem ia para a escola levava do berço a norma culta. Quando o acesso escolar foi democratizado, quem veio? A maioria da população que não tem contato com esta norma padrão. É preciso ter cuidado na hora de trabalhar isso em sala de aula."

Vivência

Imagine um aluno, filho de pais que não dominam a norma culta, que chega à escola e o professor diz que é errado quem fala "os livro", "nós vai", "dez pão", "dois real" e, afirma ainda, que isso é língua de gente burra. "Isso só complica mais a educação. É preciso levar em conta a fala que chega na escola e ensinar o padrão culto sem dizer que fulano fala tudo errado. Ninguém está negando que se deve ensinar a língua culta, até porque é a língua do Estado. Mas há maneiras de fazer isso e os livros didáticos de hoje não podem ser, por isso mesmo, iguais aos do passado", explica o professor aposentado de Língua Portuguesa da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Ataliba de Castilho, autor da Nova Gramática do Português Brasileiro.

O linguista Gilberto de Castro, que ministra a disciplina de Metodologia de Ensino da Língua Portuguesa, lembra ainda que ninguém aprende uma língua pelo simples fato de que há um conjunto de regras que definem o que é correto. "Claro que o professor vai ensinar o que é norma culta, mas não pode ter a ousadia de dizer que a língua daquele cidadão [que está fora do padrão] não existe", diz.

Para especialistas que leram o capítulo do livro que trata da variedade popular, o que houve foi uma confusão. "O capítulo começa mostrando a concordância da norma culta e diz que na norma popular isso é diferente e, ainda, que a pessoa que não domina a norma pode sofrer preconceito. No fim, mostra como é a frase na norma culta", afirma Faraco. Castilho lembra que o livro, ao demonstrar que existe a variação popular, de forma alguma fez isso para ensinar os alunos a falar daquele jeito. "É para expor aos estudantes as diferenças regionais, socioculturais. O professor ensina a partir de uma língua que os alunos já falam, por isso precisa fazer com que eles reflitam sobre esta língua."

A doutora em linguística pela USP Maria José Foltran lembra ainda que o tema variedade linguística não é novo, existe há pelo menos um século. "O mais importante é as pessoas perceberem adequação na escolha das formas linguísticas. Ninguém fala como escreve e, se for escrita formal, precisa saber como usá-la. Em nenhum momento foi dito que vale tudo." Para o linguista da Unicamp Sirio Possenti, a polêmica se resume ao simples fato de que muitos comentaram o livro sem ao menos terem lido. "E o pior, se leram, não entenderam."

Por que os estudantes não aprendem?

Deixar o ensino da norma culta a cargo exclusivamente do professor de português é o que leva o Brasil a ter alunos com baixos índices de boa leitura e proficiência da língua. "Muitos professores de matemática não se preocupam em corrigir o que foi escrito errado nas provas. E não é assim. O português não existe só na aula de língua portuguesa", diz Vera de Fátima Ferraz de Paula, professora de português do Colégio Estadual do Paraná.

O pior, afirma Vera, é quando os pais também não ajudam por falta de tempo ou por não saberem ensinar o filho a estudar. "Sobra tudo para o professor de português e, pela quantidade de horas-aula que temos, para ensinar produção de texto, gramática e literatura, é impossível", explica. Vera diz ainda que os alunos quase sempre não valorizam a disciplina. "Você dá um texto e eles não lembram, depois de alguns minutos, o que dizia o primeiro parágrafo. É preciso cultivar a leitura."

Autor da Nova Gramática do Português Brasileiro, Ataliba de Castilho acredita que o insucesso do ensino da língua portuguesa está atrelado a três fatores: a falta de formação cultural do país; a falta de autoridade dos professores; e, por último, a má-formação dos docentes. "Infelizmente as universidades públicas estão levando o aluno para a pesquisa e não para a sala de aula", diz.

O linguista Carlos Aberto Faraco lamenta que as escolas não estejam preparadas ainda para receber a população que não domina a cultura letrada. "A escola não sabe fazer isso, estamos construindo uma pedagogia que seja capaz de fazer. Há este esforço."

Mais do que isso, porém, Faraco acredita que, sob o ponto de vista da norma culta, sofremos uma esquizofrenia. "Temos duas normas cultas. A real, praticada na fala e escrita, e a gramatical, que é uma invenção de regras que perturba o domínio da língua portuguesa", afirma. Faraco cita como exemplo um trecho do poema de Carlos Drummond de Andrade que tem o verso "tinha uma pedra no meio do caminho." Na norma culta real brasileira, o verbo impessoal é o ter, mas na norma gramatical deveria ser o haver. "O verbo haver é morto, mas insistem em dizer que ele é o certo. Que cultura é esta que pega o maior poeta e diz que ele escreveu errado?", indaga. O mesmo ocorre com esse e este – a gramática dita as regras, mas na prática não há diferença alguma nos usos.

Serviço:

Quer ler o capítulo que gerou a polêmica? Acesse o site www.acaoeducativa.org.br e clique no link "nota pública sobre o livro".

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Interatividade

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