
"Vamos pedir proteção contra acidentes, assaltos e fiscalização." A invocação, feita antes da oração do Pai-Nosso, na partida de um ônibus fretado em Ponta Grossa com destino ao Paraguai, revela os três principais medos dos sacoleiros que viajam diariamente para o maior centro popular de comércio da América Latina. A atividade é proibida aos olhos da Receita Federal e repleta de riscos e incertezas, mas atrai todo ano cerca de 9,5 milhões de pessoas que movimentam perto de US$ 5 bilhões.
VÍDEO: Sacoleiros enfrentam rotina de sacrifício e medo no Paraguai
A reportagem acompanhou a excursão por 29 horas, em trajeto de 292 quilômetros. A viagem aconteceu 17 dias depois do acidente que matou 14 sacoleiros dos Campos Gerais que iam às compras no Paraguai no dia 12 de junho.
O medo de acidentes foi lembrado por Clarice Marques, que foi pela primeira vez a Ciudad del Este em busca de uma alternativa para complementar a renda da família, formada por fumicultores. "Não dormi na viagem de medo de o ônibus bater. Dá uma sensação ruim, porque deixei a minha casa, com meus filhos e meu marido chorando porque não queriam que eu viesse", afirma.
Quem não compra, mas está envolvido na excursão, também tem receios. O motorista Cristiano Kanzlr foi vítima de assalto no ano passado quando levava uma excursão para São Paulo. "Eles chegam atirando na lataria e você é obrigado a parar", afirma. A maioria dos sacoleiros viaja desprotegida, embora muitas empresas contratem batedores armados, nem sempre regularizados. "Eu conto com a proteção de Jesus", comenta Kanzlr.
"Laranjas"
A fiscalização é outro grande receio pelo risco da perda da mercadoria e pelas horas a mais que o sacoleiro pode perder na viagem. Como a cota de isenção tributária é de US$ 300, muitos sacoleiros profissionais levam "laranjas", pessoas que viajam junto para que o comprador possa gastar o equivalente a duas cotas. O "laranja" tem a passagem paga por quem o contratou e ainda pode trazer algumas encomendas. Mesmo estando dentro da cota, no entanto, o risco de prejuízo existe, já que a Receita Federal não deixa passar mercadorias cuja quantidade caracterize revenda.
Outro "inimigo" a enfrentar é o cansaço. Depois de longas horas de viagem, o tempo é curto e é preciso andar muito pelas lojas para escolher as melhores mercadorias. Quem quer economizar e não desembolsar R$ 10 para os carregadores tem de levar tudo nos ombros até o ônibus de origem, que fica estacionado a algumas quadras das lojas, no chamado "chiqueirinho", que ganhou o nome devido à falta de limpeza do local.
Por causa da falta de fiscalização sanitária nos restaurantes, outro problema para o sacoleiro é fazer as andanças de estômago vazio. Nas excursões organizadas por Maria Dirce Souza Panizon, os passageiros são orientados a esperar pelo jantar no retorno a Ponta Grossa.
Depois da chegada, os sacoleiros ainda enfrentam mais um percalço: o calote de clientes. Janete Novaki é sacoleira há quatro anos e diz que as dívidas somam "um carro zero". "Eu sei que não vou receber", conforma-se. A sacoleira Jussara Becker, que conseguiu aumentar a renda mensal em 10% com a importação, afirma já ter recebido até ameaças de clientes que não querem pagar a dívida.
Mesmo assim, quem é sacoleiro não desiste da atividade. A iniciante Ângela Cristina Verneck conta que os perigos não vão fazê-la deixar a atividade. "Era isso que eu esperava e pretendo continuar", afirma.
R$ 331,7 mi em produtos foram retidos em 2011
A fiscalização de sacoleiros é concentrada na aduana brasileira, próximo à Ponte da Amizade, e na BR-277, que é a rota principal de quem volta do país vizinho. Porém, a Receita Federal (RF) diz estar atenta a rodovias secundárias, que não têm postos policiais.
Em todo o ano passado, a RF no Paraná apreendeu o equivalente a R$ 331,7 milhões em mercadorias que são fruto de descaminho (importação ilegal de produtos permitidos, como brinquedos) e contrabando (importação de produtos proibidos, como medicamentos). Já neste ano, somente no primeiro semestre, as apreensões somam R$ 214,5 milhões.
A fiscalização na aduana é feita por amostragem. Quando um veículo, seja carro de passeio, van ou ônibus fretado por sacoleiros, cai no pentefino dos fiscais, todas as mercadorias são revistadas. Quem passar da cota paga imposto de 50% sobre o valor excedente ou perde a mercadoria que extrapolou a cota. Se a fiscalização ocorrer fora da aduana, em posto policial, por exemplo, a Receita declara "pena de perdimento", ou seja, apreende 100% da mercadoria, caso se caracterize a intenção de revenda dos importados.
O responsável pelo transporte é penalizado com a perda do veículo. Como as sacolas são identificadas com o nome dos proprietários, quem está regularizado, em tese, não perde o que comprou. "Nós sempre orientamos que a fiscalização seja individualizada", lembra o delegado da RF em Ponta Grossa, Gustavo Luís Horn.
Uma sacoleira, que não quis ser identificada, conta que em certa ocasião, até o relógio de uso pessoal, que estava dentro de sua bolsa, foi apreendido pelos fiscais na aduana. Mesmo no ponto de revenda, o importado é passível de apreensão.
Desde fevereiro está em vigor a Lei dos Sacoleiros, com a criação do Regime Tributário Único (RTU), em que a mercadoria entra no país pagando uma alíquota única, de 25%. Porém, por enquanto, a adesão ainda é baixa.
14 sacoleiros morreram em um acidente na BR-277, no dia 12 de junho, depois que a van em que viajavam bateu em um caminhão.
Vida e Cidadania | 2:10
Acidentes, assaltos e apreensão de mercadorias são apenas alguns dos riscos encarados por milhares de brasileiros que compram mercadorias no Paraguai para revender no Brasil. Mesmo proibido, o comércio informal movimenta cerca de US$ 5 bi por ano no Brasil.




