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História

Três líderes, um só mito

Um mito de três monges fundidos num só, nascido nos idos do século 19, reforçado na Revolução Federalista de 1893 e consumado na Guerra do Contestado, perdura ainda hoje ao longo da divisa do Paraná com Santa Catarina, 90 anos depois do fim do conflito que redefiniu os limites territoriais dos dois estados. O primeiro era um velho de barba branca, um ermitão alçado à fama pelas curas milagrosas nos ralos povoados onde hoje o Brasil se encontra com a Argentina. Morreu tido como santo, em 1870. O segundo adotou o mesmo nome, fez pregações e desapareceu em 1908. Entre os crentes carentes de um novo messias, a esperança de ressurreição se concretizou com a chegada do terceiro, o responsável pela resistência armada à recém-criada República brasileira.

Os ideais dos monges unificados sobrevivem na crença da população do Meio-Oeste catarinense, indo Paraná adentro. A reverência ao homem "santo" se estende de diversas formas por cidades como a Lapa, União da Vitória, Rio Negro (PR), Mafra, Porto União, Irani e outras cidades catarinenses. À revelia da Igreja, ficou conhecido como São João Maria de Jesus. Tudo começou com João Maria D’Agostini, de origem italiana, que cativou seguidores com sua ética e vida simples. Mas a imagem que se guarda ainda hoje é do segundo, um sírio partidário dos maragatos cujo nome verdadeiro era Atanás Marcaf. Apontado como João Maria reencarnado, tinha o costume de fincar cruzes por onde passava. São elas, as cruzes, que mantêm o mito vivo.

Uma das profecias a ele atribuída dizia que quando caísse a cruz, a cobra iria acordar e engolir a cidade. Dito e feito, dizem os crédulos. A cruz fincada por ele em 1890 num dos morros de União da Vitória não resistiu ao tempo e, apodrecida, foi ao chão em 1983. Naquele mesmo ano, o Rio Iguaçu, que serpenteia por todo o vale, subiu 10,5 metros acima do nível normal e avançou sobre a cidade. Foi a pior enchente registrada na região que se tem notícia. Um dos poucos lugares protegidos da água foi a antiga casa do coronel Amazonas de Araújo Marcondes, que dera acolhida ao monge num momento de apuro. Hoje, por precaução, duas cruzes estão fincadas naquele morro.

Cristo

A contragosto de muita gente, uma imagem de Cristo foi erguida no morro das cruzes, sustentada por uma capela de concreto. Houve polêmica e os contrários alegavam que ali deveria ser feita uma cruz maior, pois já havia monumento igual no morro em frente, na vizinha Porto União (SC). Não foram ouvidos. A estátua encobriu as duas cruzes em União da Vitória, mas não a fé dos crentes em João Maria. Há muito mais vestígio de velas nos degraus de uma das cruzes do que no interior da capela de Cristo. A crença no poder do monge não deixa morrer as muitas lendas e profecias em torno do líder.

Angu

Uma delas conta que, ao negar angu com lingüiça para João Maria, uma dona de casa viu uma porção de cobrinhas agitadas na frigideira. Outra dá conta que um frei não quis batizar uma criança porque a mãe não tinha dinheiro para pagar pelo ofício. João Maria emprestou-lhe o dinheiro, e o dinheiro desapareceu da mão do padre depois do sacramento. A devoção ao monge é manifestada de diversas formas. Uma enorme imagem do monge reveste a parede externa da Faculdade Estadual de Filosofia, Ciência e Letras de União da Vitória. Em frente dela fica o escritório do juiz aposentado João Maria de Jesus Campos Araújo, nome recebido em homenagem ao monge. Ele nasceu na localidade de Covó, em Mangueirinha, por onde João Maria passou em suas peregrinações.

Gerações

Getúlio, de 70 anos, é a terceira geração de devotos da família Siqueira. Aprendeu com a mãe, que por sua vez ouvia os ensinamentos da mãe dela, colhidos diretamente da fonte, o próprio João Maria. Quase toda semana, Seu Getúlio sai do sítio, nos arredores de Mafra (SC), para tratar de seus assuntos na cidade. Leva junto tantos quanto pode da família para acender uma vela para na cruz fincada pelo monge onde hoje fica a praça. Leva pelos caminhos da devoção também o filho caçula, Pedro Gabriel. A cruz ganhou uma cobertura de concreto, mas teve sua haste vertical consumida pelo fogo de tanta vela que acendem.

Em Mafra, corre de boca em boca outra lenda tão fantástica quanto aquela de União da Vitória. Comentam por ali que há muito tempo pessoas ligadas à prefeitura local tentaram transferir a cruz para o cemitério. Os responsáveis pela mudança não conseguiram mais dormir até que a restituíssem ao devido lugar.

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