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No meio do caminho que liga Rio Branco do Sul a Cerro Azul, no Vale do Ribeira, tinha muita pedra, além de crateras lunares e barro até o joelho. Levava-se duas horas e meia para vencer 56 quilômetros – com tempo bom. O inferno na Terra. A pavimentação da PR-092, recém-inaugurada, depois de meio século de espera, resolveu o problema. Quem viu como era antes acha que está num tapete mágico e passa voando, livre de radares e de pedágios. Mas no meio do caminho também tem uma ponte. Não a de alvenaria, que divide os dois municípios, mas uma de ferro, ao lado, já entrada em anos, amassada e enferrujada, com os dormentes banguelas, e, o pior, sem utilidade. São cerca de 45 passos, algo como 25 metros, ligando o nada ao lugar nenhum. Sobra-lhe, além da esperança de um restauro, ter sido a protagonista de uma deliciosa crônica histórica. A ponte do Rio Piedade chegou ali por engano. Estava destinada a Rio Branco, no Acre, a 3.645 quilômetros dali, mas está há 90 anos em Rio Branco – do Sul.

O episódio passa de geração em geração na Colônia Itupava, onde fica a ponte, e é contado quase sempre com as mesmas palavras, como atestaram Zenaide Cordeiro Machado, 43 anos, e João Gonçalves Cordeiro, 66 anos. A ponte, vinda da Europa, teria desembarcado em partes na cidade de Rio Branco entre 1909 e 1913, segundo as versões, e chegou à divisa puxada por cavalos. A viagem é narrada como um épico sertanejo. "Tinha curva que parecia uma ferradura. Os bichos precisavam rabear", garante João. Na hora de encaixar os ferros, a surpresa: era muita ponte para pouco rio. "Foi preciso cortar 15 metros de cada lado. Tinha algo errado. O lugar não merecia. Nem carro passava aqui", assegura Zenaide. "Erraram que fosse, acertaram, porque aqui também precisava de uma ponte e ponto final", rebate o veterano João.

Como o governo do Acre não reclamou a encomenda extraviada e a gente de Itupava se apegou à ponte que ia para o Norte, ficou tudo como estava. João – cuja casa recentemente ficou espremida pela rodovia – cria suas galinhas soltas na ponte abandonada e diz que vai cuidar para que o pontilhão não caia. Zenaide, dona de uma lanchonete à beira da estrada, papagueia entre os fregueses a versão extra-oficial do "Caso da Ponte do Piedade". Arrisca qualquer dia ela mesma pegar lixa e lata de tinta e dar um trato na estrutura: "A ponte é como se fosse minha."

O economista rio-branquense-do-sul Celso Lima, 57 anos, é historiador diletante desde a adolescência. Há duas décadas, ao pesquisar sua genealogia familiar, decidiu de uma vez por todas que ia escrever um livro sobre a história da cidade. A obra deve desencantar até o fim do ano, mas à boca pequena, na cidade de 30 mil habitantes, Lima é o homem que sabe tudo sobre Rio Branco do Sul. Mas o episódio da ponte, incluído na pesquisa, vai permanecer como está, com hipóteses demais e documentos de menos. Lima conta ter virado do avesso o Arquivo Público do Paraná e outros. "Deram sumiço nos papéis", acredita.

Para o historiador, o caso tem uma explicação razoável. Em 1909, foi inaugurado o trecho da estrada de ferro que ligava Curitiba a Rio Branco do Sul. O clima era de prosperidade para o Vale do Ribeira e se acreditava que a ferrovia chegaria não só a São Paulo como ao Planalto Central. A ponte do Acre deve ter passado despercebida em meio ao deus-nos-acuda de dormentes e estruturas de ferro chegando a toda hora, além de ser uma necessidade para transportar produtos até a cidade vizinha.

Com a Primeira Guerra Mundial, a partir de 1914, os investimentos ferroviários minguaram, frustrando as expectativas econômicas da região, mas a "ponte por engano" ficou por ali, funcionando como um registro do fausto que Rio Branco do Sul e Cerro Azul poderiam ter alcançado. Nas décadas seguintes, a riqueza passou a circular pela região de Ponta Grossa, o Vale do Ribeira empobreceu, a estrada só fez piorar, mas a ponte, que muitos juram ser oriunda da França ou da Grã-Bretanha, permaneceu, num misto de lenda urbana e mistério insolúvel. Há até quem se delicie lendo a inscrição gravada nas guardas da ponte – "CUTEHOFFNUNCSHUTTE" – como se fosse coisa de pirâmide do Egito.

O caso da ponte, contudo, serve de prelúdio para algo mais interessante – a própria história de Rio Branco do Sul. A cidade que levou o nome do Barão – justamente o que negociou a região do Acre com a Bolívia, em 1902 – foi formada em meio a episódios que deixariam esbugalhados os olhos de colegiais. Os primeiros registros sobre o local datam de 1790 a 1871, quando se chamava Votuverava, lugar de pistoleiros célebres e onde a escravidão foi extinta antes mesmo de a princesa Isabel assinar a Lei Áurea. O abolicionismo era obra e graça do padre Antônio Joaquim Ribeiro, conhecido por negociar alforrias, nem que fosse na base da chantagem.

Teria sido dele a idéia de transferir a sede do município para o lugar em que está hoje – 12 quilômetros distante de Votuverava, de olho no zunzum da chegada da ferrovia. Vendo seu progressismo rejeitado, amaldiçoou a aldeia com tanta fúria que até hoje, quando alguma coisa não dá certo, diz-se que é "praga do padre Ribeiro." Depois dele, houve uma refundação contínua do município. De 1908 a 1938, já próxima à estação, ficou se chamando Rio Branco, só, igualzinho à Rio Branco do Acre. De 1938 a 1947, com a proibição de municípios com nomes iguais, não só voltou a se chamar Votuverava como passou a pertencer a Cerro Azul. Em 1947, ganhou autonomia, rebatizou-se Rio Branco, mas do Sul, para evitar mais confusões com a distante capital acreana. A coincidência tinha rendido cartas extraviadas, perda de nome e do patrimônio e, menos mal, uma ponte que, depois de ter as pontas cortadas, serviu feito uma luva.

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