Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Ação social

Um teatro feito de sonho e de pó

ONG inaugura hoje espaço cênico no Guarituba. Local se tornou polo de música erudita em zona de ocupação habitada por 50 mil pessoas

A oficineira da ONG Thaíza Dias: música em meio aos conflitos do Guarituba. | Daniel Castellano/Gazeta do Povo
A oficineira da ONG Thaíza Dias: música em meio aos conflitos do Guarituba. (Foto: Daniel Castellano/Gazeta do Povo)

Ainda passa carroça na Rua dos Hortênsias, em Piraquara, Região Metropolitana de Curitiba (RMC). Ali tem menino jogando pelada, rabiola de pipa no fio de luz. Qualquer veículo é o bastante para levantar poeira, “desgraça pouca” de quem pôs roupa no varal. Rara a casa que não tenha tijolo aparente – tudo parece “em obras”. Hortênsias? Nenhuma. É pura periferia, exceto por um detalhe. A ruazinha ganha a partir de hoje um teatro, para 210 pessoas. Não se fala de outra coisa por ali. Foi erguido em seis meses, com uma intenção fácil de adivinhar: levar cultura a um lugar onde o asfalto chega em prestações.

A obra tem autor – a Associação Beneficente São Roque. Nome – Teatro Frei Rui Guido Depiné. Custo – R$ 200 mil, dinheiro pingado, de doações a “vaquinha” na internet. Fica num ponto do mapa que muda tudo – o Guarituba. O bairro que ganha um espaço de arte abriga algo próximo de 50 mil pessoas, metade da população de Piraquara. Naquelas divisas, todos os índices se mostram superlativos.

GALERIA: Confira mais imagens do teatro da Rua Hortênsias

INFOGRÁFICO: Veja a localização do Guarituba

Algo como 80% dos terrenos são ocupações irregulares; 60% dos moradores têm menos de oito anos de estudo e média salarial familiar de 2,5 salários. O Guarituba é pobre, distante e violento – sua via principal, a “Betonex”, registra média de cinco homicídios por ano. Por isso os associados de São Roque estão lá e deram ao teatro o nome de “Frei Rui”. Questão de justiça.

O frei

Há quem aposte não haver em todo o Guarituba uma pessoa que não conheça o franciscano Rui Depiné, o homem por trás do Hospital São Roque, especializado em hanseníase. Na tradição cristã, São Roque é padroeiro das vítimas de lepra. Na tradição do Guarituba, frei Rui é o protetor dos doentes e da ocupação, a maior da RMC. Quando tudo começou, em favela no meio da turfa, nos meados da década de 1980, Rui já atuava em Piraquara e se deslocava até o bairro que assimilou – à beira das nascentes de água – o inchaço populacional de Curitiba. Virou sua causa.

Os que acompanhavam o trabalho do religioso no hospital, sabiam de suas andanças pelo Guarituba. Alguns resolveram ajudá-lo, fundando a Associação Beneficente São Roque. Foi em 1988 e tinha pretensões administrativas. O frei precisava. O que era para ser uma “mãozinha” virou uma ONG que faz jus ao terceiro setor. “Tem horas que eu olho e me impressiono com o tamanho que a obra tomou”, reconhece a esteticista Márcia Aparecida Cruz Vicente, presidente da associação.

Não é exagero. A ONG salta aos olhos por dois motivos. 1) O grupo – formado por 20 pessoas – mantém um grande bazar de usados, de onde vem a maior parte de sua receita. As sobras de roupa, de material de construção e o que mais couber na lista permite que Rui continue atendendo os milhares que lhe pedem socorro, sem trégua. A parábola da “Multiplicação dos Pães” é pura verdade; 2) Embora tenha uma sede no Bacacheri, onde funciona o bazar, há sete anos a ONG praticamente se mudou para o paupérrimo Guarituba, precisamente na Rua das Hortênsias. Ali faz de tudo para 200 e tantas crianças e adolescentes dos 7 aos 17 anos. Se tiver um pouco mais do que isso, tudo bem. “Aqui a gente não dispensa ninguém”, brinca Márcia.

A Tina

Organizações sociais costumam ser hiperativas. É do ramo do negócio. A “São Roque” supera a média das outras. Tem ateliê de costura, distribuição de cesta básica para 170 famílias (723 pessoas), lista longa. Somando o organograma todo da ONG, entre 850 e mil necessitados são atendidos a cada mês.

Mas tem sobretudo cultura, com um particular: é cultura elaborada, padrão Belas Artes. Não raro o movimento social entende arte como “coisa para ocupar o tempo”, terapia para população vulnerável, atividade de contraturno. Os tarefeiros da ONG escolheram outro caminho – o da cultura como direito. “Nossa maestrina é paga. E é das boas”, comenta a ex-presidente Anna Thaís Fuck, ao se referir a Ana Cristina Lago, a “Tina”. A musicista traz no currículo a preparação do coral do HSBC. Quando pisa no Guarituba, os pequenos se agitam.

Tina não precisa mais ligar o GPS para chegar na Rua das Hortênsias. Nem ela nem o músico Rodrigo Olavaria Lara, para citar dois dos que lideram ateliês que ocupam a casa . O lugar ganha ares de usina de leitura, encenação e música. Muita música.

Essa acabou sendo a marca do “São Roque”. O grupo de coro e orquestra Gato na Tuba, por exemplo. Hoje, na inauguração, os anfitriões são os cursistas de teatro – a turma do Alecrim. Em setembro, atores e cantores se unem para estrelar o musical A grande fábrica das palavras. Será apresentado no Guairinha. A intenção é convidar o público a dar um pulo no Guarituba, um lugar onde tem poeira, mas também um palco, pois cultura é de direito. A Orquestra Sinfônica de Heliópolis começou assim – o pessoal da ONG curte a comparação.

Jean Vítor Tenória da Silva, 8 anos; Emilly Barbosa de Almeida, 7; e Vinícius Alves Vilela de Melo, 10: ensaios de teatro no Guarituba. | Daniel Castellano/Gazeta do Povo

1 de 10

Jean Vítor Tenória da Silva, 8 anos; Emilly Barbosa de Almeida, 7; e Vinícius Alves Vilela de Melo, 10: ensaios de teatro no Guarituba.

Jean, Vinícius e Emilly nas ruas da ocupação onde moram 50 mil pessoas. | Daniel Castellano/Gazeta do Povo

2 de 10

Jean, Vinícius e Emilly nas ruas da ocupação onde moram 50 mil pessoas.

As irmãs Karina e Thaíza Dias, promessas na orquestra Gatona na Tuba, uma das iniciativas da Associação Beneficente São Roque. | Daniel Castellano/Gazeta do Povo

3 de 10

As irmãs Karina e Thaíza Dias, promessas na orquestra Gatona na Tuba, uma das iniciativas da Associação Beneficente São Roque.

ONG atende precisamente 210 crianças e adolescentes. Tem fila de espera para entrar no projeto., que é mantido parte pela Lei Rouanet, parte pelos lucros de um bazar de usados no bairro Bacacheri, | Daniel Castellano/Gazeta do Povo

4 de 10

ONG atende precisamente 210 crianças e adolescentes. Tem fila de espera para entrar no projeto., que é mantido parte pela Lei Rouanet, parte pelos lucros de um bazar de usados no bairro Bacacheri,

Experiência artística na ONG do Guarituba segue a lógica do “direito à cultura”: profissionais formados e remunerados conduzem as oficinas. | Daniel Castellano/Gazeta do Povo

5 de 10

Experiência artística na ONG do Guarituba segue a lógica do “direito à cultura”: profissionais formados e remunerados conduzem as oficinas.

A menina Emilly Barbosa de Almeida, 7 anos, durante os ensaios para a inauguração do Teatro Frei Rui, no sábado (15). | Daniel Castellano/Gazeta do Povo

6 de 10

A menina Emilly Barbosa de Almeida, 7 anos, durante os ensaios para a inauguração do Teatro Frei Rui, no sábado (15).

A arte educadora Diviane Helena (de azul, à esquerda), diretora do espetáculo A grande fábrica de palavras, primeiro musical do grupo de teatro Alecrim. | Daniel Castellano/Gazeta do Povo

7 de 10

A arte educadora Diviane Helena (de azul, à esquerda), diretora do espetáculo A grande fábrica de palavras, primeiro musical do grupo de teatro Alecrim.

Ensaios para o espetáculo que estreia em setembro, no Guairinha, como forma de agradecimento aos patrocinadores da ONG. | Daniel Castellano/Gazeta do Povo

8 de 10

Ensaios para o espetáculo que estreia em setembro, no Guairinha, como forma de agradecimento aos patrocinadores da ONG.

Parte dos fundos da Associação Beneficente São Roque, no Guarituba, em Piraquara. À direita, uma das entradas do teatro. | Daniel Castellano/Gazeta do Povo

9 de 10

Parte dos fundos da Associação Beneficente São Roque, no Guarituba, em Piraquara. À direita, uma das entradas do teatro.

A turma da ONG (da esquerda para a direita). Ana Lúcia do Nascimento (coordenadora cultural); Rodrigo Olavaria Lara (músico); Diviane Helena (encenadora do grupo Alecrim); Guilherme Kewin Carvalho (monitor); Karina Dias (instrumentista do Gato na Tuba); Márcia Aparecida Cruz Vicente (presidente da associação); Ana Cristina Lago (atrás, maestrina); Daiane Gonçalves (designer e arte educadora); Ana Thaís Fuck (uma das fundadoras da associação, voluntária); Irene Gaspar (serviços gerais); Erotides Aparecida Souza Paulo (diretora financeira da associação). | Daniel Castellano/Gazeta do Povo

10 de 10

A turma da ONG (da esquerda para a direita). Ana Lúcia do Nascimento (coordenadora cultural); Rodrigo Olavaria Lara (músico); Diviane Helena (encenadora do grupo Alecrim); Guilherme Kewin Carvalho (monitor); Karina Dias (instrumentista do Gato na Tuba); Márcia Aparecida Cruz Vicente (presidente da associação); Ana Cristina Lago (atrás, maestrina); Daiane Gonçalves (designer e arte educadora); Ana Thaís Fuck (uma das fundadoras da associação, voluntária); Irene Gaspar (serviços gerais); Erotides Aparecida Souza Paulo (diretora financeira da associação).

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.