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Discriminação

Uma lei “pra inglês ver”

Mudanças no Estatuto da Igualdade Racial são criticadas pelos ativistas do movimento negro. Texto não traria nada de prático para reduzir desigualdades

“Acham que somos todos iguais e que não existe discriminação. Não posso tratar de forma igual quem viveu explorado por 500 anos.” Jaime Tadeu, militante da Associação Cultural de Negritude e Ação Popular | Rodolfo Bührer/Gazeta do Povo
“Acham que somos todos iguais e que não existe discriminação. Não posso tratar de forma igual quem viveu explorado por 500 anos.” Jaime Tadeu, militante da Associação Cultural de Negritude e Ação Popular (Foto: Rodolfo Bührer/Gazeta do Povo)

Ativistas do movimento negro afirmam que a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial não traz mecanismos práticos para a redução das desigualdades no Brasil. O texto foi aprovado na Câmara dos Deputados na quarta-feira e sofreu diversas modificações desde o projeto inicial. A matéria tramita no Con­gresso há dez anos e a base governista teve de abrir mão dos pontos principais para tirá-la da gaveta. Ficaram de fora a criação de cotas nas universidades públicas e a regularização de terras quilombolas. A votação ocorreu em caráter conclusivo e o texto segue agora para o Senado.

O deputado Antônio Roberto (PV-MG), relator, queria ter aprovado o projeto em maio, mas suspendeu a votação para negociar com os líderes da oposição quatro pontos principais. O primeiro era a questão quilombola. Pelo texto inicial, descendentes de comunidades negras teriam assegurado o direito de regularização fundiária das terras ocupadas. O segundo ponto era a criação de cotas em todas as universidades públicas brasileiras de acordo com o porcentual de negros de cada estado. Em terceiro lugar estava a exigência de um porcentual mínimo de afrodescendentes nos meios de comunicação. E, por fim, o favorecimento de empresas com ações afirmativas (incentivo à contratação de afrobrasileiros, por exemplo) em licitações públicas. Todos os pontos de discórdia foram retirados.

Para os militantes, houve a supressão das principais ações que poderiam trazer mudanças imediatas para a população negra. Foram aprovadas questões relativas à saúde dos afrodescendentes, discriminação na internet e liberdade religiosa. "Foi uma derrota muito grave. O governo abriu mão da negociação. É uma lei para inglês ver", afirma Reginaldo Bispo, coordenador nacional de organização do Movimento Negro Unificado, um dos principais movimentos sociais do Brasil em prol das ações afirmativas. Para ele, o Estatuto será inoperante e uma armadilha eleitoreira para 2010.

Um dos principais argumentos de quem era contrário à aprovação desses pontos na nova legislação é que esse seria um marco divisor do Brasil em raças. Já os críticos desse pensamento afirmam que o país sempre foi dividido entre negros e brancos. "Há 500 anos é assim. Até hoje, as classes populares tiveram poucos ganhos", argumenta Bispo. "A aprovação reflete a desigualdade social. O Estado continua a beneficiar uma elite branca."

No Paraná, a Associação Cul­tural de Negritude e Ação Popular (ACNAP) também lamentou a aprovação do Estatuto sem os pontos considerados principais. "A questão das cotas é primordial. Aqui na Universidade Federal do Paraná, por exemplo, conseguimos colocar 2 mil negros no ensino superior em cinco anos. Imagine esse processo em todo o país?", diz o militante Jaime Ta­­deu. Ele argumenta que há relutância de determinados setores da sociedade em reconhecer a desigualdade. "Acham que somos todos iguais e que não existe discriminação. Não posso tratar de forma igual quem viveu explorado por 500 anos." Para Tadeu, somente a possibilidade de incentivos fiscais e recomendação de mais investimentos – e não uma lei determinando isso – não farão grande diferença no cotidiano dos negros.

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Principais pontos

Confira como ficou o Estatuto da Igualdade Racial:

O QUE FOI APROVADO

Política

Partidos serão obrigados a ter 10% de negros, e não 30% como era previsto anteriormente, entre os candidatos nas eleições proporcionais.

Saúde

O Sistema Único de Saúde (SUS) terá de se especializar em doenças mais comuns na população afrobrasileira, como a anemia falciforme. Também cria as diretrizes da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra.

Educação

Inclui no currículo obrigatório disciplinas que estudem a História da África e do negro no Brasil.

Esportes

A capoeira foi reconhecida como esporte de criação nacional e o Estado deve garantir recursos para manutenção e proteção da prática.

Empregos

O poder público poderá dar incen­ti­vos fiscais para empresas que tive­rem mais de 20 empregados ou que contratarem pelo menos 20% de negros.

Discriminação

A proposta acrescenta ao crime de racismo a prática deste ato pelo meio virtual. A pena varia de um a três anos.

Recursos

O Estado deverá prever recursos para ações afirmativas nos planos plurianuais e nos orçamentos anuais.

Liberdade religiosa

Assegura o livre culto às religiões afrodescendentes e a possibilidade de denúncia ao Ministério Público em casos de intolerância religiosa.

Acesso à terra

O Estado expandirá o financiamento agrícola para desenvolver as atividades da população afrobrasileira no campo.

O QUE FICOU DE FORA

Saúde

A identificação da raça/cor em documentos do SUS, que serviria de base para traçar políticas públicas específicas.

Educação

Criação de cotas em todas as universidades públicas brasileiras e nos contratos do Fies.

Quilombolas

Remanescentes de quilombos te­riam a propriedade definitiva das terras ocupadas.

Mercado de trabalho

O Estado poderia realizar a contra­­ta­­ção preferencial de afro-brasi­­lei­­ros no setor público e incentivar medi­­das semelhantes nas empresas privadas.

Em uma licitação, o critério de desempate poderia ser o fato de empresas terem ou não ações afirmativas.

Meios de comunicação

Filmes, peças publicitárias e programas de tevê teriam no mínimo 20% de afrobrasileiros.

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Interatividade

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