Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Genealogia

Vida trocada, identidade confusa

Ao descobrir que foram trocados na maternidade, já adultos, Édson e Videlson agora buscam os retalhos da vida que não puderam ter

Édson e Videlson (ao centro) comemoraram o aniversário dia 28 ao lado dos irmãos biológicos do primeiro | Rodolfo Bührer/Gazeta do Povo
Édson e Videlson (ao centro) comemoraram o aniversário dia 28 ao lado dos irmãos biológicos do primeiro (Foto: Rodolfo Bührer/Gazeta do Povo)
A costureira Tereza Nardes exibe a foto do filho Marcelo, que mora em Itanhaém |

1 de 1

A costureira Tereza Nardes exibe a foto do filho Marcelo, que mora em Itanhaém

Até recentemente, Édson e Videlson não hesitariam diante de qualquer pergunta sobre quem eles são. "Sou Édson Jorge Borges, nascido em 28 de julho de 1977, filho de José Borges e Judita Batista Borges", diria um sem vacilar. "Sou Videlson dos Reis Santos, nascido em 28 de julho de 1977, filho de Manoel Taborda dos Santos e Rita dos Reis Santos", responderia o outro. Durante 28 anos essa foi a identidade deles, construída mediante falsas premissas. O nome e o parentesco, primeiras características de identificação de uma pessoa, estavam errados. Eles foram trocados na maternidade, e isso fez deles pessoas diferentes do que poderiam ter sido.

Édson foi criado pela família de Videlson, e vice-versa. As diferenças na aparência física no seio de cada família eram evidentes, mas como imaginar algo parecido a uma troca de bebês em Rio Branco do Sul, à época uma cidadezinha de 20 mil pessoas na região metropolitana de Curitiba? A revelação foi obra do acaso, que literalmente bateu à porta de um deles. Ambos moravam a 60 quilômetros um do outro na cidade de Itaperuçu, já emancipada de Rio Branco do Sul, até que na campanha política de 2004 um candidato a vereador surge à porta de Édson em busca de votos. "Você é muito parecido com meus irmãos", disse surpreso.

Fim de campanha, tudo parecia esquecido. Édson recém-abrira uma mercearia no Jardim São João e negociara numa padaria o abastecimento de pães, logo suspenso porque a entrega se dava às 4 da madrugada. Mas a necessidade o levou de volta à padaria e desta vez se deparou com o dono, Gérson, irmão de Gilson, o candidato agora eleito. No meio da conversa, Gérson o achou parecido com os irmãos. Videlson logo chegou e foi perguntando data e local de nascimento. Édson viu em Videlson semelhanças com seus próprios irmãos, e ao saberem-se nascidos no mesmo dia e hospital, a conclusão foi lógica.

Tanta convicção até dispensava DNA, mas o exame foi ne­­cessário para a ação de danos morais que Édson abriria contra o hospital onde nasceu. Desde então, eles compartilham a família um do outro. Os pais trabalhavam havia muito tempo na mesma indústria de cimento, em Itaperuçu. Manoel era chefe de equipe; José, servente. Acabaram amigos de­­pois da descoberta, tanto que a primeira vez que Édson viu o pai José chorar foi na morte do pai Manoel, em 2006, de infarto. A mãe biológica, Rita, morreu em 2000 sem saber da troca. Após a morte de Manoel, os outros irmãos partilharam a herança também com ele.

Édson desmontou a casa de madeira onde os irmãos foram criados e a remontou na chácara dele, em Rio Branco do Sul, numa tentativa de resgatar fragmentos de uma história que não pôde viver. Mas e a identidade, esse conjunto de caracteres exclusivos que nos tornam pessoas únicas, que nos fazem tomar consciência de nós mesmos e da nossa realidade individual através das nossas atividades, história de vida, ambições, sonhos, personalidade? No caso deles, um tomou o lugar do outro, mas sem rivalidade. Restou a evidência de que duas características imutáveis da constituição da identidade – o nome e o parentesco – não foram tão imutáveis assim.

Há quem confunda identidade com o nome, uma vez que o processo de identificação começa na família, onde as duas dimensões da identidade começam a se constituir: a igualdade, no sobrenome, e a diferença, no pré-nome. Mas pré-nome e sobrenome não se bastam como identidade, ressalva Antonio da Costa Ciampa, doutor em Psi­cologia Social, escritor e professor da PUC-SP. Para ele, a construção da identidade depende de quatro condicionantes: as normas sociais; a intersubjetividade, ou seja, como a pessoa se inter-relaciona com os outros; a subjetividade, espaço íntimo com o qual ela interage com o mundo externo; e a objetividade, o que de fato ela quer ser.

A identidade é, portanto, uma construção dialética a partir da interação da pessoa no meio social, conforme a participação e a apropriação que ela faz dos valores, das ideias e normas vigentes no grupo a que pertence. Assim, a identidade pode ser tanto determinada quanto determinante. Daí, conclui-se que não se pode falar dela sem falar de socialização, pois é inerente ao ser humano, sobretudo quando se é jovem, em busca grupos de afinidade para o reconhecimento de uma identidade. Para isso, ele busca no seu entorno os modelos a seguir, em geral os que estão mais próximos.

Ao considerar a identidade como algo não inato, que pode ser entendida como uma forma sócio-histórica de individualidade, a psicologia social destoa da ideia de natureza humana, segundo a qual as potencialidades do indivíduo já nascem com ele, dando ao contexto social a importância secundária de promover condições para a manifestação das habilidades predeterminadas. Dessa forma, o meio social fornece as circunstâncias para variados modos e alternativas de identidade. Ou seja, a história de vida do indivíduo e a forma como ele se vê são determinados pelas condições históricas do grupo social no qual está inserido.

Para a psicanálise, a pessoa é produto da relação de amor e identificação com os pais e só se define como sujeito a partir dessa relação, ao buscar identificação com o modelo que o outro representa. Assim, Édson e Videlson introjetaram as identificações infantis cada qual no meio familiar em que foram inseridos por engano e, por meio delas, formaram cada um sua identidade. Diante da impossibilidade de se mudar o passado, segundo Ciampa a pergunta a se fazer a cada um deles é: "O que você vai fazer com que fizeram com você?".

Embora compartilhem a família um do outro, tratando-se como irmãos, Édson e Videlson agora querem mudar o nome nos documentos pessoais, em mais uma tentativa de resgatar fragmentos da identidade que poderiam ter tido. Édson pretende usar para essa finalidade o dinheiro que espera receber do processo contra o hospital que fez a troca dos bebês.

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.