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 | Rodolfo Bührer/ Gazeta do Povo
| Foto: Rodolfo Bührer/ Gazeta do Povo

Entrevista com José Eduardo Cardozo (PT-SP), deputado federal.

Brasília - Em um ambiente marcado pelo continuísmo, o deputado federal José Eduardo Cardozo (PT-SP) chamou a atenção por ter anunciado que não concorrerá à reeleição em outubro. Após dois mandatos consecutivos, o petista está desiludido com a falta de esforço para a aprovação de uma reforma política. Considerado um dos parlamentares mais influentes do Congresso Nacional, ele não acredita em mudanças no atual sistema sem pressão da sociedade.Além da reforma política, Cardozo é conhecido no Con­­­gresso pela luta contra a volta dos bingos.

Entre os 513 deputados, apenas ele e mais três já anunciaram oficialmente que não concorrerão à reeleição (leia mais abaixo).Segundo Cardozo, sua decisão ao menos contribui para a discussão sobre mudanças no sistema político. "Se eu falasse o que estou falando sendo candidato, ninguém me escutaria. Diriam que é demagogia de uma cara que quer dar uma de ético." Mas avisa: se a reforma ficar apenas a cargo do parlamento, não sai. "Só haverá mudança por pressão da sociedade, quando todos perceberem que estamos em um sistema que alimenta a corrupção."

Sem mandato, o petista vai voltar ao cargo de procurador do município de São Paulo e a dar aulas de Direito. "Inclusive lá [na procuradoria] meu salário é maior que o de deputado [R$ 16,5 mil mensais]", disse, em entrevista exclusiva à Gazeta do Povo.

Os parlamentares deveriam ter um prazo de validade?

Nos dias de hoje, essa é uma discussão que se coloca um pouco deslocada. Em um outro sistema político, que é o que eu defendo, sim. Por exemplo, eu defendo o voto em lista. E acho que seria perfeitamente razoável, por essa regra, que você tivesse uma limitação de mandatos para forçar a renovação partidária. No atual sistema, esse tipo de coisa não resolve nada. Quando você tem tudo errado na origem, na premissa, nada resolve. O problema de hoje não é se a pessoa tem muitos ou poucos mandatos. Ele tem a ver com a forma de financiamento eleitoral e com o voto individualizado no candidato ao Legislativo. Enquanto isso não se resolver, com financiamento público de campanha e fortalecimento dos partidos pelo voto em lista, nós vamos sempre ter problemas que não vão se resolver com mudanças pontuais, como essa regra de criar um limite de mandatos. Ou nós enfrentamos tudo isso de frente, ou tudo que fazemos é paliativo.

Mesmo nesse atual sistema, a repetição de mandatos contribui para a má imagem do Congresso Nacional?

O que prejudica a imagem do Congresso é a relação perversa entre aquele que doa e aquele que recebe a doação de campanha. Às vezes há pessoas que doam desinteressadamente e políticos que recebem sem qualquer compromisso espúrio com o doador. E mesmo assim haverá problemas no processo. Basta que o doador tenha algum tipo de acusação que se levantará suspeita sobre o recebedor, mesmo que ele não tenha qualquer ligação com os fatos. Por outro lado, o sistema é muito responsável pelas relações promíscuas que existem hoje. O resultado é essa corrupção cíclica que nós acompanhamos. Eu vejo muito maniqueísmo nessa discussão; gente dizendo que o problema são os atuais deputados. O problema não são os atuais, nem os antigos, nem os que virão. As regras atuais nunca permitirão que tenhamos uma vida política saudável no Brasil.

Como o senhor vê o critério de ex­­­periência entre os deputados atualmente? Os mais antigos ocupam o papel que deveriam?

Estou convencido de que o peso político de um parlamentar não deriva de sua antiguidade na Casa. Eu vejo pessoas que chegam aqui e, em um curto espaço de tempo, ocupam uma densidade política que outros nunca vão ocupar, mesmo após muitos anos. Cada caso é um caso.

O senhor ainda acredita em reforma política?

Acredito, luto por ela e pretendo continuar lutando fora do parlamento. Aqui eu acho que já dei a minha cota de contribuição, mesmo que a discussão não tenha avançado. Aliás, eu louvo demais algumas pessoas que, mesmo pensando como eu, vão continuar disputando a reeleição. Não acho errado quem quer continuar. Minha decisão é pessoal, motivada por uma saturação. Acho que já cumpri o meu papel e avalio que as pessoas não devem fazer coisas que já não acreditam mais. Mas eu vou apoiar outros candidatos, aqueles que têm compromisso com a reforma política.

Qual é a melhor estratégia para promover a reforma política?

Vamos fazer um histórico. Por que o nosso sistema político funciona assim? A Constituição de 1988, a mais democrática já feita no Brasil, ampliou imensamente o controle do Estado, fortaleceu o Judiciário, o Ministério Público, afirmou direitos para o cidadão em cláusulas pétreas... No entanto, o sistema político é retrógrado. As linhas mestras são as mesmas da ditadura militar. Por uma razão muito simples: quem fez essa Constituição não foi uma Assembleia Nacional Consti­­tuinte eleita para isso. Foi o próprio Congresso Nacional investido de poder constituinte. Muito dificilmente as instituições se autorreformam. Por isso é tão importante que a reforma seja conduzida por uma constituinte eleita exclusivamente para isso. E que esses eleitos não possam depois, por um período determinado, concorrer ao Congresso. Seriam pessoas eleitas apenas para refazer o sistema político, que não teriam interesse pessoal em conservar regras em benefício próprio.

Uma constituinte precisa de um patrocinador, não? Mesmo com tanta popularidade, o presidente Lula parece não ter se empenhado nessa questão.

Houve sim um empenho. O Lula falou várias vezes na reforma. O problema é que houve momentos aqui na Casa em que a estabilidade governamental ficou em jogo. Teve uma época [2007] em que os maiores partidos apoiaram o financiamento público de campanha, o voto em lista. Eram projetos do deputado Ronaldo Caiado (DEM-GO), um dos maiores nomes da oposição, e nós apoiamos. Só que vários partidos da base aliada, antes da votação, disseram que, se a reforma fosse aprovada, romperiam com o governo. De uma hora para outra, nenhum partido manteve a unanimidade a favor da reforma. Para mim é muito claro: se isso ficar com o parlamento, não sai. Só haverá mudança por pressão da sociedade, quando todos perceberem que estamos em um sistema que alimenta a corrupção.

É saudável que os parlamentares usem o Legislativo como trampolim para as eleições no Executivo?

Existe uma cultura dominante no Brasil, que vem de uma história de autoritarismo, em que o Legislativo é visto como um poder de segunda categoria. Na hora de votar, você pensa primeiro em quem? Não é no vereador; é no prefeito. O Legislativo é como se fosse um apêndice de poder. Se o próprio eleitor não vê o parlamento como algo importante, as pessoas eleitas por ele reproduzem essa ideia, de que ocupam cargos que não têm importância. Por isso ele é visto como uma passagem para um cargo "mais importante". Há um tempo, um vereador paulista fez uma dissertação de mestrado na Fundação Getúlio Vargas e analisou o papel das Câmaras Municipais. A pesquisa mostrou que 70% dos paulistas achavam que as Câmaras estavam subordinadas aos prefeitos. Ou seja, que são órgãos da prefeitura. Será que a população é ignorante, não sabe da divisão de poderes? Na verdade, o cidadão reproduz aquilo que vê. Os vereadores se comportam como despachantes dos prefeitos. E, às vezes, é só isso que o eleitor quer. O vereador que não consegue cortar uma árvore que caiu na frente da sua casa, é considerado um mau vereador – mesmo que essa não seja uma atribuição direta dele. Repito: é um problema sistêmico.

Como foi a reação de familiares, eleitores e políticos quando o senhor desistiu da reeleição?

Minha família festejou. Boa parte das famílias dos parlamentares teme por eles. Nós somos todos corruptos e bandidos até que provem o contrário. Há filhos de deputados que não falam nas escolas quem são os seus pais, com medo de serem chamados de ladrões. Isso é muito perverso. Vários colegas me disseram que estavam emocionados e repetiram: "Você está fazendo aquilo que eu gostaria de fazer". Alguns deles não saem por condições pessoais, porque representam um projeto político que envolve muita gente. Alguns passam tanto tempo na política que não têm mais profissão para voltar. Na sociedade, alguns me apoiaram, outros brigaram comigo dizendo que eu deveria ficar. O que eu acho que é o ponto positivo da minha decisão foi ter iniciado essa discussão sobre a reforma política. Se eu falasse o que estou falando sendo candidato, ninguém me escutaria. Diriam que é demagogia de uma cara que quer dar uma de ético.

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