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Discurso de formatura em geral é algo a ser esquecido um minuto após ter sido encerrado. Muitas vezes, na verdade, a plateia nem presta atenção ao que está sendo dito lá em cima. E com razão. Na maior parte das vezes trata-se de simples parolagem mal pensada. Mas sempre há o ponto fora da curva. Uma década atrás, David Foster Wallace, um escritor norte-americano que acabou morrendo cedo demais, fez um discurso tão bom, mas tão bom que virou livro e é citado mundo afora como um novo clássico.

Foster Wallace começa falando sobre a história de um peixe que encontra dois peixinhos menores e pergunta para eles – só para puxar papo – como está a água. Os dois ficam encafifados e depois se perguntam: "o que diabos é água?" O ponto, diz Foster Wallace, é que às vezes as coisas mais importantes da nossa vida estão aí, ao nosso redor, e não percebemos. As coisas mais importantes para nossa própria sobrevivência por vezes são as mais difíceis de ver e de perceber.

Nos 50 anos do golpe que iniciou a ditadura militar de 1964, há gente falando de tudo. Que o país vai mal. Que os políticos não prestam. Que os serviços são deficientes. Que a população sofre. Tudo verdade. A conclusão a que alguns chegam, no entanto, é de que a democracia, que voltou a existir no Brasil desde 1988, não estaria dando conta do recado, e que portanto é preciso fazer alguma coisa para voltar aos "bons tempos".

Trata-se de um pensamento comum, o de tentar resgatar uma "época de ouro" que por algum motivo foi perdida. Conforme o tempo passa, por exemplo, todos queremos resgatar nossa juventude. Em política, também funciona assim. Queremos sempre a grama antiga – é ela que sempre parece mais verde. E daí a começarem os delírios de que a ditadura militar trouxe tempos mais felizes vai só um pulo. Um pulo perigosíssimo, claro.

Claro que temos todo o direito de nos irritarmos com nossa democracia imperfeita. Quem não teve vontade de xingar Eduardo Cunha nos últimos dias, por exemplo, provavelmente é porque não leu jornais. E no entanto, é por não haver censura aos jornais que sabemos hoje das mamatas do Congresso. Na ditadura, não havia menos crimes de corrupção. O que havia era menos escândalos, porque se impedia a divulgação do que ocorria.

A educação vai mal, claro. Mas universalizamos o ensino e os jovens têm acesso a universidades particulares de graça. É pouco? Evidente. Há também o que se avançar na saúde, na segurança, na economia etc, etc. Mas pense na água ao redor dos peixes. Se podemos hoje nos queixar disso, é porque temos o direito de falar do governo. Temos o direito de nos informarmos sobre o que ocorre em Brasília. Os jornais não convivem com censores nem com proibições de falar sobre qualquer tema. A água ao nosso redor é a democracia.

Há quem insista que o fascismo é melhor. Acham que a origem de todos os nossos problemas está no fato de a população insistir em votar "errado" (de acordo com o padrão de quem?). Trata-se de um mal entendido. É que a democracia exige que sejamos tolerantes e que ninguém tente impor sua vontade na base do tacape. Há quem não aceite isso. Não aceitam que seu voto valha o mesmo que o de alguém com menor grau de educação. Não aceitam ter que negociar suas ideias. Não aceitam ter de fazer pressão para que as coisas aconteçam.

Em certo sentido, o gosto pela ditadura tem a ver com uma má vontade em relação ao vizinho. É não ter que convencê-lo de algo, não ter que conversar com ele. É preferir ter um porrete na mão de alguém que possa ir lá e obriga-lo a fazer tudo do jeito que você considera correto. A opção pela ditadura é coisa de gente presunçosa (que acha que está sempre certa), preguiçosa (que acha perda de tempo ter de discutir algo) e perigosa (que prefere que alguém seja preso e torturado só por discordar do que seja sua opinião).

Numa democracia, quem quiser defender a ditadura fica à vontade. Mas está cuspindo no prato em que come. Vivesse numa ditadura, jamais poderia pedir democracia. A água ao seu redor teria desaparecido. E só aí perceberíamos a falta que ela faz.

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