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Ayres Britto: esse cara é ele

O penoso julgamento do mensalão catapultou Joaquim Barbosa ao estrelato da vida pública. O ministro negro de origem humilde foi facilmente transformado em mártir – e até em candidato a presidente da República em 2014. Os holofotes sobre ele relegaram ao papel mais discreto a um dos personagens mais interessantes da democracia brasileira, Carlos Ayres Britto.

Ontem, Ayres Britto completou 70 anos e foi compulsoriamente aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF). Vai deixar saudades. Não apenas pelos aspectos técnicos, mas porque foi o único a conseguir moderar o ânimo dos colegas ao longo dos tensos meses de análise do mensalão.

Quando o clima entre Barbosa e Ricardo Lewandowski esquentou, foi ele, como presidente da corte, quem contemporizou. Nos intermináveis impasses metodológicos, costurou as saídas. E quando precisou agir pela própria conta e risco para desempatar o julgamento, ignorou a possibilidade de usar o voto de minerva e ficou ao lado dos réus.

Ayres Britto não foi só peça-chave do mensalão. Passaram pelas mãos dele quatro das decisões mais importantes da história do STF. O ministro foi relator da ação que liberou as pesquisas com células-tronco embrionárias, da que revogou todos os artigos da Lei de Imprensa, da que legalizou as uniões estáveis entre homossexuais e da que definiu a demarcação contínua da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima.

Como presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), também conduziu uma decisão marcante para a política paranaense, em 2008. Graças ao entendimento de Ayres Britto, o vencedor dos dois turnos daquele ano na eleição municipal de Londrina, Antonio Belinati (PP), teve o registro de candidatura cassado. O ministro também orientou a realização de um inédito terceiro turno na cidade, em 2009, que acabou vencido por Barbosa Neto (PDT).

Foi nesta época que tive a oportunidade de entrevistá-lo pelas primeiras vezes. Dá para imaginar a dificuldade de falar com um ministro do STF e presidente TSE... Mas Ayres Britto sempre foi um sujeito sem frescura e, ao mesmo tempo, educado ao extremo.

Às vésperas do tal terceiro turno em Londrina, ele topou falar em um intervalo de sessão no Supremo sobre a necessidade de comparecimento dos eleitores – na época, havia um forte sentimento de revolta devido à demora na ação da Justiça. "Não se pode jogar pela janela a oportunidade de interferir no curso da vida democrática, de constituir as autoridades que vão representar o povo", disse Ayres Britto, com seu jeitão de poeta.

Ao final da entrevista, agradeci e ele me interrompeu: "eu é que agradeço por poder colaborar de alguma forma". Depois, nas inúmeras coletivas que acompanhei sobre o mensalão, era sempre o mesmo tom. Ele até engrossou uma ou outra vez com algum advogado, mas sem perder a ternura jamais.

Não que as pessoas que ocupam cargos públicos precisem ser gentis o tempo inteiro, mas seria ótimo se todos se importassem em estimular a civilidade. Vale para juízes e, principalmente, para os políticos com mandato eletivo. Uma democracia de alto nível depende diretamente do nível dos seus principais representantes.

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