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Quando o governador Sérgio Cabral usou o trabalho do economista Steven Levitt ("Freakonomics") para defender o aborto como política de segurança pública, dizendo que a Favela da Rocinha "é uma fábrica de produzir marginal", juntou, num só "bonde", oportunismo, impostura e ignorância.

Cabral é oportunista porque, em setembro de 1996, quando era candidato a prefeito do Rio, descascou seu adversário, Luiz Paulo Conde, por defender o aborto. Nas suas palavras: "Conde foi leviano. O que o Rio precisa é melhorar o atendimento na saúde". Continua oportunista ao tentar reescrever o que disse ao repórter Aluízio Freire, do portal G1, onde sua entrevista está conservada na íntegra.

Cabral praticou uma impostura quando embaralhou uma questão de direito – a decisão da Corte Suprema que, em 1973, legalizou o aborto nos Estados Unidos – com as estatísticas do crime nos anos 90. A Corte decidiu uma dúvida constitucional: o direito da mulher de interromper a gravidez. Esse é o verdadeiro e único debate do aborto. Nada a ver com o propósito de fechar (ou abrir) "fábrica de produzir marginal".

Levitt, por sua vez, indicou que o aborto foi responsável por uma queda de até 50% na criminalidade americana. Em momento algum apresentou-o como alternativa de controle da natalidade. Pelo contrário, qualificou-o como "um tipo de seguro rudimentar e drástico". Cabral submeteu-se a uma vasectomia e não terá mais filhos (teve cinco).

Tanto Levitt como a Corte Suprema não atravessaram a linha que o doutor transpôs, vendo no aborto uma modalidade de política pública capaz de produzir segurança. Uma coisa é dizer que houve uma relação de causa e efeito entre a liberação do aborto e a queda da criminalidade. Bem outra é associar o aborto às políticas de segurança pública.

A teoria de Cabral sustentou-se na ignorância. Ele disse que a Rocinha tem taxas de fertilidade africanas. Besteira, elas equivalem à metade.

Em 2000, o número médio de filhos nas favelas cariocas (2,6) era superior aos dos outros bairros do Rio (1,7), mas ficava próximo da estatística nacional (2,1). Quem acha que o problema da segurança está na barriga das faveladas deve pensar em mudar de planeta. A taxa dos morros do Rio é a mesma do mundo.

Nos anos 70, muitos sábios sustentavam que o Brasil precisava baixar sua taxa de fertilidade (5,8) para distribuir melhor a riqueza.

Passou-se uma geração, a fertilidade caiu a um terço (1,9) e o índice de Gini, que mede as desigualdades de renda, passou de 0,56 para 0,57, chegando ao padrão paraguaio. Nasceram menos brasileiros, mas não se reduziu o fosso social.

A tropa de elite pode acreditar que se aprimora a segurança pública com o capitão Nascimento cuidando dos morros e o governador Cabral, dos ventres. As contas de Levitt são honestas, suas conclusões são rigorosas e "Freakonomics" é um ótimo livro. Aplicando-se a outros números de Pindorama o mesmo tipo de tortura cerebrina a que Cabral submeteu as conclusões do economista americano, seria possível dizer que a queda de 67% na taxa de fertilidade nacional provocou um aumento de 300% nos homicídios no Rio de Janeiro.

O artigo "The impact of legalized abortion on crime", de Steven Levitt e John Donohue III, está na internet, infelizmente em inglês. É melhor do que o resumo publicado em "Freakonomics".

O tucanato e sua privataria da girafa

Agência Reguladora de Transportes de São Paulo, dirigida pelo doutor Carlos Eduardo Sampaio Dória, ex-presidente da Câmara dos Vereadores da capital, ex-deputado federal e ex-presidente da falecida Telesp, contestou uma nota publicada aqui na semana passada. Nela, sob o título "Girafa", o signatário considerava esquisitas as condições da prorrogação, em 2006, de dez contratos de concessões rodoviárias que venceriam em 2008. Um deles foi estendido até 2018. O mimo, sacramentado ao apagar das luzes do governo de Cláudio Lembo, assegurou às concessionárias a taxa média de lucro de 20% ao ano, fixado em 1998.

A agência oferece uma informação relevante a respeito dos critérios que orientaram as exigências e a taxa de lucro das concessionárias:

"Foram ambos fixados unilateralmente pelo estado na origem das concessões, independentemente da conjuntura econômica da época".

Como a variável macroeconômica ficou de fora, o tucanato e as empreiteiras ficam dispensados de repetir que a taxa de lucro médio de 20%, contratada em 1998, deveu-se às incertezas da ocasião. Se entre 1998 e 2006 a taxa de juros caiu de 28% para 12%, azar da patuléia. Os pedágios paulistas, prorrogados até 2018, continuarão a ser os mais caros do país, de longe.

O texto da semana passada tinha o título de "Girafa" em homenagem ao ruminante de cabeça pequena e pescoço grande, que come no andar de cima das árvores. (É lenda a história segundo a qual ela usa a língua para limpar as orelhas.)

Finas memórias

Saiu um livro precioso nos Estados Unidos. É o diário de Arthur Schlesinger Jr. Ele morreu em fevereiro, aos 89 anos, depois de ter lecionado em Harvard, trabalhado com o presidente John Kennedy e vivido no pedaço mais inteligente e divertido do andar de cima mundial. Dificilmente será editado no Brasil. Aqui vão quatro pedaços dessas memórias de um homem brilhante, cortesão, fofoqueiro e pérfido.

Chelsea Clinton

Do senador republicano John McCain sobre a filha do ex-presidente americano: "Sabe por que ela é tão feia? Porque é filha ilegítima de Hillary Clinton com Janet Reno". (A senhora Reno, procuradora-geral no governo Clinton, é um armário.)

Lyndon Johnson

Exemplo de empatia com uma platéia, dado pelo presidente Johnson (1963-1969), ao redator de um discurso para o lançamento de um programa de assistência odontológica: "Quero que você escreva um texto capaz de levar uma velha desdentada da primeira fila a sentir minha mão debaixo de sua saia".

Hillary Clinton

O ator Gregory Peck viu-se sentado numa mesa onde Hillary Clinton estava ladeada por dois professores: "A senhora não tem idéia do prestígio que dá aos acadêmicos sentando-se entre dois deles, quando podia estar ao lado de Gregory Peck". Hillary: "Mas daqui eu passo o jantar olhando para Gregory Peck".

Vinho branco

Sobre coquetéis onde não é servido uísque: "A teoria segundo a qual depois de um dia de trabalho o sujeito precisa de um copo de vinho branco parece-me mais uma prova da decadência da nova geração".

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